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Uma carta para Carla

Uma carta para Carla
Andre Coneglian
dez. 22 - 7 min de leitura
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Londrina, 07 de dezembro de 2020.

 

Uma carta para Carla,

Longe de ser indelicado ou informal demais, tomei a liberdade de referir-me a você sem pronomes de tratamento rebuscados. Tem a ver com proximidade, uma proximidade permeada por um imenso respeito pelo que representa na trama que busco agora resgatar.

Buscarei desfiar os fios já tecidos, numa tentativa de entender o que me trouxe até a disciplina de Complexidade e o Pensamento Complexo e Sistêmico. “Desfiar” os fios sem desfazer a trama, afinal, todos os fios entrelaçados já estão postos. “Desfiar” como tentativa de reconhecer este e aquele outro fio – os conscientes, pois há muitos outros inconscientes.

Inevitável não trazer Paulo Freire para esse exercício, quando li por primeira vez “densas tramas”, Freire sintetizou um sentimento sempre presente em minha vida. Usei as palavras abaixo num trabalho de graduação em 2003:

“Nunca um acontecimento, um fato, um feito, um gesto de raiva ou de amor, um poema, uma tela, uma canção, um livro têm por trás de si uma única razão. [...] se acham envolvidos em densas tramas, tocados por múltiplas razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado, de que outras são mais visíveis razão de ser. Por isso que a mim me interessou sempre muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si” (Paulo Freire em Pedagogia da Esperança).

Nas minhas densas tramas pessoais, há os muitos fios que teceram minha trajetória, somados à minha personalidade, valores e moralidade familiares, infância, escola, trabalho...

Desde que tenho consciência, a percepção é que não via nem sentia a vida como a maioria das pessoas à minha volta; era tomado de sobressaltos pela artificialidade e superficialidade que as pessoas viviam e compreendiam os fatos, os fenômenos, as circunstâncias.

Passei a exercitar cada vez mais a minha capacidade de observar, observava o tempo todo; o único modo de expressão era por meio das palavras escritas, desenhos e outros trabalhos manuais.

A primeira vez que vi uma jabuticabeira repleta de frutos, fiquei tão maravilhado que precisei desenhar. Um sofá abandonado num terreno baldio, terreno que ficava no meio do caminho para o meu trabalho, habitou o meu mundo das ideias até dar um nome para ele e criar todo um enredo: “O sofalitário”, o sofá solitário como eu, no meio do meu caminho, “solitário” segundo o padrão das pessoas.

Desenho feito em 20 de setembro de 1998.

Eu era bastante seletivo com minhas amizades; aproximava-me das pessoas que demonstravam ser qualitativamente diferentes da maioria das pessoas. Os livros, a literatura de modo geral, foram castelos em que habitei, muitos personagens me inspiraram e passaram a ser modelos, tal qual expõe Frank Smith:

“Muitas pessoas desenvolveram os seus interesses pessoais e vocacionais através de personagens que conheceram nos livros. Para muitos indivíduos, a leitura oferece a única chance de conhecer pessoas cujo exemplo gostariam de seguir, que poderiam guiá-los e inspirá-los. Nossas reais identidades podem ser estabelecidas através de autores que lemos e dos personagens sobre os quais lemos” (SMITH[1], 1999, p. 124).

A escola foi um lugar idolatrado, pois era o local onde o filho de um pedreiro e uma dona de casa podiam saciar a fome e sede por conhecimento. A biblioteca dessa escola era um verdadeiro oásis. Estudar e conhecer foram verbos constantes em toda minha trajetória, os quais me levaram para o Curso Técnico em Contabilidade, para o curso básico de Língua Brasileira de Sinais, para a graduação em Pedagogia com habilitação em Deficiência Auditiva, Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação.

Outros fios foram compondo, assim minha vida. Outras tramas de fios se uniram à minha trama: minha esposa, com ascendentes Aymarás, povo indígena dos Andes e Altiplano boliviano. Tivemos dois filhos. Tudo parecia no seu devido lugar, todos esses fios da trama que nos formavam. Até nos depararmos com a gastrite nervosa e princípio de depressão do nosso filho mais velho, na época com quatro anos de idade, o que nos conduziu ao fenômeno da superdotação.

Por sua vez, compreender a superdotação do nosso filho mais velho, nos levou aos serviços de Atendimento Educacional Especializado e à Associação Londrinense de Incentivo ao Talento e Altas Habilidades/Superdotação. Pessoas que estavam há muito mais anos envolvidas com as questões da superdotação.

No ano de 2019 pude participar do II Seminário Internacional de Criatividade, Talento e Superdotação e II Jornada Paranaense de Altas Habilidades/Superdotação, ocasião em que conheci você, Professora Carla, pessoalmente. Já havia nascido em mim o desejo e a necessidade de fazer um segundo Doutorado, dessa vez em Educação, voltado para as questões da superdotação. Assim, em 2020, no contexto de pandemia e isolamento social, tive o privilégio de participar da Disciplina de Complexidade, como aluno especial.

Desde a primeira leitura, a primeira aula, as primeiras reflexões e discussões sobre a grandiosidade que é a visão complexa da existência, especialmente, as reflexões e discussões baseadas nos estudos de Edgar Morin. A dedicatória que Morin faz em seu livro “A cabeça bem-feita” é um marco. Diz o autor: “se o ensino os entedia, desanima, deprime ou aborrece, pudessem utilizar meus capítulos para assumir sua própria educação”. O tédio na escola é como se acostumar com a ração que é oferecida no ensino tradicional.

Cursar a disciplina de Complexidade é o oposto: poder saciar-me com pratos de ambrosia, o manjar dos deuses que experimento nas leituras, reflexões e discussões da disciplina, que saciam minha fome, que não é finita, porém, oferece bases teóricas e práticas para analisar o mundo de modo holístico e não fragmentado.

O que me impele ainda mais o desejo de investigar o fenômeno da superdotação e a escola que satisfaça todos os sujeitos, especialmente aos superdotados, para que não tenham que se contentar com ração, mas que encontrem o quanto antes, pratos deliciosos e saborosos. Que possam criar suas próprias receitas e pratos com o tempo.

São muitos fios, tantos outros que poderia “desfiar”, todavia, acredito que esses citados são uns dos principais, pois tudo é importante.

Carla, professora querida, guia e mestre na doce jornada de indicar horizontes e possibilidades. Cá estou, pois, vislumbrando horizontes e elaborando tantas possibilidades. A qualidade dos fios dessas tramas “novas” melhoraram significativamente meus dias. Muitíssimo obrigado pela oportunidade!

 

André Coneglian

 


[1] SMITH, Frank. Leitura significativa. 8. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.


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