Neiva Maria de Mattos
Estou eu trabalhando em meio a toda a correria que um final de ano letivo traz para uma diretora escolar, quando ouço a responsável pela cozinha dizer em voz alta: “joga isso fora”, levanto os olhos e vejo o responsável pela limpeza levando para o lixo uma caneca grande, de alumínio, daqueles antigos, dos bons, duráveis que quando mais nova já fora brilhante e até reluzente, mas no momento está um pouco amassada e muito, muito encardida.
A cena desperta em mim uma certa nostalgia não sei de que. Mas pelo jeito mais alguém experimentou sentimento semelhante, pois a velha caneca não foi para o lixo, por algum motivo, veio parar na minha sala. Deixei-a quieta ali num canto, até que chegou o domingo, um domingo com cara de quase férias e quase véspera de Natal, que eu decidi ficar em casa e descansar. Enquanto preparava o almoço, ao cozinhar os ovos para a salada, lembrei-me da caneca. Lembrei também que na minha infância, caneca de alumínio era chique, pois no dia- a- dia usávamos canecas que papai fabricava, colocando asas nas latinhas de extrato de tomate, bem como os pratos eram de latas de marmelada. Ah!!! Que delícia de saudades!!! Investir o tempo para preparar canecas e pratos para nós, era sinal de cuidado, de carinho e atenção.
Após o almoço, enquanto descansava fui buscar a tal caneca, que acho que nem é caneca, deve ser uma leiteira, é grande, comporta uns dois litros. E despretensiosamente resolvi lavá-la e areá-la. Creio que só as mulheres da minha geração sabem o que é isso, ouvir a mãe dizendo: “alumínio tem que estar brilhando. Pode até ser velho, amassado, mas precisa estar limpo e brilhando”, e como que cumprindo a ordem materna, fui esfregando com sabão e Bombril e fui vendo surgir o brilho, quanto mais eu percebia o brilho, mais eu sentia vontade de continuar o trabalho, querendo vê-la no seu brilho original. E enquanto esfregava comecei a pensar que canecas de alumínio e pessoas tem muita semelhança. Veja, esta que está aqui em minhas mãos, quando nova foi brilhante, não só na cor, mas também na tarefa, já preparou café para tanta gente, provavelmente aqueceu leite, chá para os alunos e em tempos de calor, também já foi à geladeira para deixar o suco geladinho que revigora o ânimo de quem estuda ou trabalha no verão escaldante do nosso Centro-Oeste.
O fato é que agora inventaram uma tal de “vida- útil” para determinados objetos, como se alguma vida pudesse ser inútil. E nesse mundo de modas e modismos, tenho a sensação de que esse pensamento atinge as pessoas. Quanta gente que ao nascer, era uma caneca novinha e encheu de alegria aquela família, cresceu, trabalhou duro, brilhando como o melhor dos alumínios, também teve filhos que foi a alegria da vida, construiu carreiras, produziu coisas e vida, foi de uma utilidade que parecia imprescindível, mas por ser dos alumínios antigos e resistentes, envelhecem, ou adoecem? Às vezes até por falta de cuidado, pois canecas de alumínios precisam ser areadas todos os dias, e pessoas precisam ser amadas, mas depois de amassada pela tal “vida útil”, encardida por falta do brilho da juventude, passa a ser tratada como uma “caneca” sem utilidade. Se não se joga no lixo, deixa pra lá, encosta num canto, esquecidas, tornam-se invisíveis.
Envolvida por esses pensamentos enquanto areava a velha caneca, lembrei-me que há muito tempo, há mais de trinta anos atrás, eu li um texto de Leonardo Boff que falava sobre o “sacramento da caneca”. Nesse texto, o autor para explicar que, os sacramentos são sinais eficazes da Graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é dispensada a vida divina, fala sobre a sensibilidade do ser humano ver o mundo como grande sacramento de Deus, pois o mundo nunca é só material e técnico, é carregado de símbolos e sentidos.
E como desde que comecei a estudar o pensamento sistêmico de Bert Hellinger, principalmente traduzido em estilo de vida por Olinda Guedes, percebo-me mais sensível ao significado das coisas e pessoas que dão sentido à vida, já não consigo compactuar com a descartabilidade de tudo.
E depois do trabalho terminado, contemplo a velha caneca brilhando, reluzente. Não parece nova porque mantém as cicatrizes de uma vida inteira à serviço. Mantém uns amassados escondidos no fundo, ou bem à vista na borda, resultados de pancadas que a vida dá, mas limpa e areada, livre das manchas encardidas, torna-se visivelmente útil.
Volto a me questionar, quanta gente encostada num quartinho ou num asilo, se encontrasse alguém que se dispusesse a investir uma tarde de domingo, numa missão de cuidado, não voltaria a brilhar?
E como estamos em final de ano letivo, não consigo não voltar o pensamento para a escola. Penso nos alunos que ficaram retidos, vão repetir o ano se voltarem à escola. E nós educadores, que cuidado faltou para que essas nossas “canequinhas humanas” não brilhassem como as outras? E se estiverem fora da faixa etária, talvez nem voltem para a escola... nesse caso, será que contribuímos com uma sociedade que tudo descarta, para jogar fora aquele que não deu a resposta útil que esperávamos? Bem... isso é uma história mais longa, com muitas outras variáveis envolvidas, muitas teorias e muitas práticas, que eu conto depois.
Por ora, peço a Deus perdão pelas vezes que consciente ou inconscientemente contribuí para esse descarte de coisas e pessoas, pelo não investir mais tempo em cuidar e, peço que Deus que é um mistério tão absoluto e radical que se anuncia em tudo, tudo penetra e por tudo resplandece, se manifeste por meio de pessoas sensíveis e generosas a essas “pessoas- canecas” dando-lhes novas oportunidades de vida que brilhe pelo simples fato de ser Vida.