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CARTA AOS ANCESTRAIS

CARTA AOS ANCESTRAIS
Marisane dos santos
out. 5 - 12 min de leitura
010

Anchieta, dia 29 de setembro de 2020

Queridos antepassados, hoje estou aqui escrevendo esta carta para agradecer a vida que vocês conseguiram passar adiante apesar de tanta dor e sofrimento, somente pela força da vida e do sistema eu estou aqui.

Eu durante muitas décadas carregava muita dor e sofrimento sem saber de onde tudo isso vinha, por muitos anos tive que aprender pela dor, pela doença e pelo sofrimento, porém foi esse sofrimento que fez eu superar tantos obstáculos e me tornar a pessoa forte que hoje sou.

Por muitos anos me sentia a única vítima do destino que eu carregava, desde criança chorava escondida com medo do mundo e de todos, tinha medos que não sabia de onde vinham, medo de perder a mãe e chorava só de imaginar caso viesse acontecer, mesmo sendo meu pai sempre que estivesse muito doente.

Passamos nossa infância aos cuidados de vizinhos e parentes enquanto minha mãe cuidava de nosso pai no hospital, isso parecia nunca ter fim, sentia muita dor em ver minha mãe chorando por tanto sofrimento, simplesmente desejava que tudo isso terminasse logo, mas nunca terminou. Economizava quando era criança, não conseguia comprar um refrigerante no salão, pois sabia que iria fazer falta para comprar o essencial para viver, hoje ainda tenho dificuldades em me permitir fazer isso, mesmo sabendo que posso e tenho condições.

Meu universo infantil era um verdadeiro tormento, medos e dores, tristezas, meu único desejo era morrer, mesmo não querendo me matar, simplesmente morrer. Passei minha adolescência presa no passado e não tinha expectativa de vida, tudo era cinza e negro, não sentia a alegria da vida e das cores que cercavam ao meu redor.

Apaguei da memória parte da minha infância, foi tudo deletado, hoje na procura das respostas sobre ela descobri que apesar de tudo fui amada e muito bem cuidada, mesmo não conseguindo lembrar de nenhum momento de alegria e paz.

Hoje estou ainda resgatando a minha criança interior e percebi o quanto ela foi muito forte e soube se defender na vida.

Atualmente consigo ver as maravilhas da vida que por muitos anos não percebia, compreendi o meu destino e sou muito grata aos que vieram antes, e que de certa forma também aliviaram as coisas para eu carregar.

Sempre tentei fugir das minhas raízes como forma de proteção, ou não aceitar como as pessoas realmente eram, agora sei que cada um deu o seu melhor e todos da sua forma tentaram sobreviver.

Querida bisavó paterna, eu sinto muito por tudo que você passou, perda trágica do meu avó por assassinato e ter que criar seu filhos sozinha.

Querida vó paterna eu vejo você, sinto muito por toda dor que você passou ao lado do meu avó que bebia muito e não aparecia em casa, gastava dinheiro que você descalça sempre trabalhava arduamente pra conseguir, sinto muito por não ter tempo de conhecer você, pois estava na barriga da minha mãe quando você morreu tão jovem com 48 anos, deixando duas crianças pequenas e cinco grandes.

Vó eu incluo no nosso sistema as duas crianças que você perdeu, uma por meningite, outra recém nascida esmagada na cama de pau quando vocês dormiam, eu sei do seu desespero e dor que você sentiu neste momento.

Querido vó Paulo, passei quase quarenta anos te julgando e até odiando por você não ter ajudado minha vó quando estava morrendo em casa. Agora sei que você a auxiliou carregando de cavalo até encontrar um carro, poderia ter feito muito mais por ela.

Eu peço perdão por ter te julgado e também te perdoo por ter sido negligente com a família, não conheço a sua história, mas acredito que não seja tão diferente do que você criou a sua, também sinto muito pelo seu destino de querer viver sozinho e anestesiado pela bebida, hoje percebo que o sentimento que tenho quando meu marido bebe é de todas as mulheres da família que passaram por isso. Obrigado meu vó pelo filho que você teve e assim me permitiu estar aqui revendo nossa história.      

Pai, hoje quero agradecer a vida que você me deu e dizer que muitos anos vivi te ignorando, te excluindo da minha vida, não sei se era por evitar sentir laços afetivos para evitar perdas posteriores ou se carregava a dor das mulheres da nossa família. Hoje percebo que você também sofreu muito pela ausência do pai, bebedeiras e a perda da mãe. Você desde os 17 anos resolveu adoecer e até hoje carrega a dor e doença no teu corpo, pois não consegue perdoar o seu passado, você também foi órfão de pais e ninguém consegue dar o que não recebeu, eu sinto muito meu querido pai pelo seu destino.

Preciso dizer que você precisa agradecer, pois recebeu uma oportunidade de ter uma família diferente e maravilhosa e ainda lhe resta tempo para olhar para ela e agradecer.

Meus filhos, quero dizer que sinto muito por não saber lidar com vocês quando nasceram, sempre olhava e me perguntava o porquê eu ter dois filhos gêmeos, enquanto outros não podem ter ou perdem. Da minha maneira eu amei vocês e cuidei, sinto muito se dei pouco amor, mas era o que eu tinha para oferecer naquele momento, sinto muito se me afastei do seu pai, mas foi uma forma de inconscientemente proteger vocês, tinha medo de casar e sofrer igual as mulheres da família, hoje vocês tem 20 anos e são maravilhosos, um orgulho da família e os amo muito.

Queridos ancestrais maternos, eu vejo vocês e sinto muito por tudo que vocês viveram, a fome que sentiram na Itália, e só tinha para comer alho com farinha de  milho. Vieram para o Brasil deixando seus parentes, passando meses no navio, onde a mãe da minha tataravó faleceu e foi jogada ao mar.

Minha querida tataravó materna, por parte do pai de minha mãe, eu sinto muito  pelo seu destino, onde perdeu seu marido afogado ao atravessar uma pinguela  bêbado, mesmo raramente bebia... onde ficou viúva com 35 anos e muitos filhos, e anos depois acabou engravidando do seu cunhado ao ir cuidar das crianças quando sua irmã foi ao hospital. Eu vejo você e entendo o desespero que sentiu naquela época estando grávida e solteira, numa família extremamente religiosa, não julgo você por tomar muito chá para tentar abortar e mesmo assim nascer o menino com problemas, sinto muito se pelo seu câncer na pele que te tirou a vida com 40 e poucos anos, também tive câncer no rosto bem parecido com você, mas por você escolhi viver, por amor a você também tive filhos solteira, mesmo achando que fosse a primeira da família e nunca ninguém ter contado esse segredo, eu sinto muito por todo o peso que carregou.

Querida bisavó Amabile, quando criança sempre te achava amarga, ruim, não deixava nós fazermos barulho, não deixava nós comermos bergamota sem estar muito madura. Agora pesquisando e escrevendo a história dos meus ancestrais entendi de onde vinha tanta dor. Eu também sinto muito, você perdeu seu marido com 43 anos, vítima do tifo, deixou você com mais de 10 filhos e outros três que estão no céu, perdeu uma filha nos pés quando estava estendendo a roupa vítima de verminose. Passou 40 anos usando roupa preta, viveu uma vida em luto, perdeu a vontade de viver. Eu reconheço a sua dor e digo que por muitos anos também senti o que você sentia, mas hoje por amor a vó eu me permito fazer diferente e acolho a vida que recebi.

Querido vô Anacleto, você foi muito importante na minha vida e de todos da família, você está aqui dentro do meu coração, agradeço à todos os valores que você ensinou para nossa família, sinto muito por não ter me despedido de você, sinto como se você apenas estivesse viajando. Sinto muito por todas as dores e perdas que você teve. Seu pai e a sua mãe vivendo em estado de luto, sinto também pelas oportunidades de terras melhores que acabou deixando por se sentir na obrigação de cuidar de sua mãe e irmão, eu vejo que você sofria calado e sempre ensinou para ninguém brigar e aceitar as coisas quietos.

 Você, assim como todos os irmãos da família não dirigiam, mesmo tendo carro, acredito que nisso deve estar o segredo do medo que sinto em dirigir, também sinto muito por você e todos os seus irmãos terem desenvolvido câncer no estômago ou próstata e apenas um ainda estar vivendo com a doença, sei que ali tem um elo de pertencimento pela doença.   

Minha querida mãe, nem sei o que expressar sobre o sentimento de gratidão que tenho à você por tudo na vida, por muitos anos carreguei as suas dores. Se pudesse até trocaria de lugar com você, sei o quanto sofreu para cuidar do pai e assumir a família, os dois papéis. Inconscientemente, eu também assumi o papel de pai e mãe como a maioria das mulheres de nossa família, hoje confesso que tenho dificuldades para assumir meu lado feminino e passar o comando para o masculino.

Quero te dizer que você foi muito forte e me orgulho muito de você, gostaria de sentir mais forte em mim a fé que você tem em orar e querer ajudar os outros, amenizar as coisas isso você herdou de seus pais.

Gostaria mais que você viajasse e visitasse suas irmãs, sei que você não gosta, pois isso faz lembrar as idas para Florianópolis cuidar do pai, mas tudo isso já passou agora você pode aproveitar a vida.

Sou igual a você, não consigo dormir de dia, me parece que sempre tem alguma coisa para fazer ou cuidar, acho incrível alguém dormir de dia.

Mãe, sinto muito por ter podado muito alto os pés de pessegueiros e você cair em cima da ponta e perfurar até o cérebro e quase perder a vida, mas Deus foi misericordioso e você só perdeu a visão do olho, que coincidência ou não também tive o câncer de pele exatamente no mesmo local.    

Tenho que agradecer também minha vó Artenila que com seus 86 anos, está aí para alegrar nossas vidas. Quero dizer que sinto muito pela dor que também sentiu com a perda no nosso vó tão novo, e dizer que vocês construíram uma linda família com muito amor e respeito e sou eternamente grata por isso.

A todos os meus ancestrais que não citei aqui quero dizer que honro e agradeço a história de cada um e dizer que tudo foi como era para ser, com erros e acertos, tristezas e alegrias... sim, porque também teve muitas alegrias no meio dessa caminhada.

Obrigada meu Deus pela leveza que sinto agora em minha alma e a oportunidade que estou tendo de aprender a cada dia e refazer a minha história de maneira diferente.

Eu escolho fazer algo de bom com a minha vida, eu escolho seguir para a vida e eu todo a vida que recebi e me permito fazer um lindo legado com ela.

Cordialmente, 

Marisane dos Santos

 

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