Queridos antepassados.
Estou feliz em poder me comunicar com vocês através dessa carta.
Tenho observado que realizar esse encontro entre nós tem sido um desafio bem dos grandões.
A orientação que foi dada pela minha professora era de parar tudo e escrever naquele instante.
Fui rebelde.
Intencionei em ter um momento especial com vocês.
Na época morava no litoral.
Quis levá-los para um lugar bonito junto comigo em meio a natureza onde houvesse sol, areia e mar.
Depois onde houvesse sol e água, depois onde só houvesse espaço e privacidade para nós e esse encontro que com certeza, seria um encontro de almas.
Mas assim o foi apenas e somente em meio a minha imaginação e prematuros ou imaturos desejosos de felicidade e realização sem se contentar com o simples, com o básico e com o direto.
Tenho observado e me questionado desde então qual a razão disso.
Será que essa minha ausência toda de ter esse momento, de ter que vivenciar esse hiato de tempo para simplesmente escrever uma carta não seja uma forma de me aproximar de vocês e sentir a presença através da ausência?
Será que algum de vocês teve planos pretensiosos e não conseguiu voltar para casa com o tesouro?
Talvez algum aborto que gerou força insuficiente para ir em direção a vida?
Sinto que há uma ameaça muito grande e muito forte por se viver.
Amo a vida, mas temo-a também.
Viver e morrer para mim são experiências tão semelhantes que quando vou chegar a algo que me leve a sentir algum prazer de alguma realização, logo perco tudo e o abatimento me assola.
Me sabotei muito ao longo de minha jornada me recusando a usar o meu corpo, as minhas ideias e a minha inteligência a serviço de algo.
E a serviço de mim mesma inclusive.
Me privei de muita experiência boa, de me abrir para novas amizades e romances também.
Assim como auto sabotagens em nível profissional.
Há muitos movimentos interrompidos e inconclusos em minha vida.
Queridos ancestrais, me contem por favor, o que afinal aconteceu na trajetória de vocês?
Quais foram os medos que vocês passaram?
Quais moléstias enfrentadas?
Os desafios sucumbidos?
Sinto que através de vocês consigo acessar uma força poderosa para seguir adiante.
Uma potencia chamada vida.
Então por que queridos antepassados, há tanta dor, tanta luta e desespero em nossa causa?
Enquanto escrevo agora, me vem um sussurro que diz assim:
Religião, aborto, medo, desespero, fuga, vida, morte.
Bem, são assuntos bem pesados de se digerir, mas agradeço pelo sopro nos ouvidos.
Pelo que estou percebendo e sentindo ao escrever tais palavras houve situações de abusos no quais as crianças não paridas eram geradas aos montes, mas elas não poderiam vir a se manifestar.
Tanto pela paternidade delas que não pertenciam ao dono da fêmea, como casos de amor proibido antes da idade permitida para tal.
A vida não pode ser passada adiante porque ela era mais ameaça de morte que outra coisa.
Era um atentado à integridade física minha e de nossos familiares também.
Sei e reconheço que sou a origem de tudo isso: o medo da solidão e do confinamento. o medo da morte.
Me mascarei de diversas formas e em várias causas e na sua família também.
Mas entenda criança, foi necessário para preservar a vida dos vivos e passar adiante o legado de sobrevivência dos mortos.
Sei que é uma causa pesada de se aguentar, muitas vidas mesmo foram tiradas por mim, o medo, mas sei e reconheço também que fui causa raiz de proteção contra o confinamento.
Isso é algo que aí no seu tempo você não sabe como que é estar viva, porém estar presa e padecendo aos poucos.
Ficar sem alimento, ficar sem sustento, sem forças para trabalhar, sendo impedida inclusive de realizar tal tarefa.
Não era fácil ser escravo.
Era açoite, era pedrada, era muito abuso e violência.
E bem fui isso, um escravo.
Um escravo liberto do medo e da prisão, mas aprisionada pelo confinamento e pela exclusão de não poder ter mais serviço ou sustento a ser garimpado.
Fui escravo liberto da senzala do sinhozinho, mas não o fui para a vida de liberdade e proteção.
Fui tão ameaçado o quanto ainda estava dentro da senzala, fui tão exposta e vulgarizada quanto o quanto estava com o senhorzinho em seus aposentos, fui tão maltratada e deixada de lado na infância, que ao menos tinha o que comer enquanto ainda estava presa.
Mas nada disso é pior que o confinamento.
De estar vivo, porém preso, amordaçado e sendo explorado o quanto deu.
De ser tirado de sujo, feio e fedido.
De ser chamado de preto como uma coisa ruim, sendo que era só a cor da minha pele e nada de mais.
Sim minha criança, há muita dor e lamento em meu meu ser.
Há raiva, revolta e inveja também.
São sentimentos vis e primitivos segundo a sua percepção, mas ainda assim são sentimentos e eu os senti.
Meus irmãos o sentiram.
O mundo o sentiu.
E levamos isso conosco poupando as futuras gerações desse mal.
Não fomos só pacíficos em nossa descoberta.
Fomos honrosos guerreiros, vigorosos em nossa força provinda da cora e da floresta. Fomos fortes, fomos astutos e sábios, mas fomos fracos também em nossos corpos diante das moléstias.
Nossa medicina não nos curou, não por que não havíamos remédio para tal.
Não tivemos tempo.
O invasor invadiu nossas terras, nossos lares, nossas famílias e filhos, nossos corpos e enfim nossas vidas.
Fomos massacrados por uma religião que não era nossa.
Nos foi imposto a crença ou a morte.
Após tanta morte decidimos aceitar a crença, mesmo não crendo, mesmo não entendendo, mesmo não seguindo ou praticando os seus conceitos mais básicos.
Algo em nós a rejeitava, mas nós nos forçamos a seguir adiante.
Haviam as crianças e a luta pela vida e pela sobrevivência assim.
Sou grata ancestrais por me contarem a histórias de vocês.
Eu os honro os incluindo no meu coração.
A luta de vocês não fora e nem foi em vão.
Hoje estou aqui em perspectivas olhando para vocês e honrando cada um de vocês em vida.
Eu sigo adiante.
Deixo com vocês o que lhes pertence.
Fica comigo aquilo que é meu por merecimento.
Sei e reconheço o meu lugar.
Vocês vieram antes, são grandes, são fortes e são inteiros.
Perto de vocês sou pequena.
Não sou fraca, pois reconheço agora o quão forte nossa família é.
Não sou fraca e nem incapaz.
Apenas, diante de vocês, sou pequena.
Honro e agradeço isso.
Passo por dificuldades semelhantes às suas, mesmo que em nível interno de alma.
Tenho dificuldade em me impor, em assumir e reconhecer o meu valor.
Para mim é um imenso desafio me abrir, explorar o que há de bom e viver a vida e o que ela tem a oferecer.
Tenho medo de engravidar.
Temo em não amar meu bebê, temo em não dar conta de criá-lo e levá-lo para a vida.
Temo muito inclusive, ser feliz e me realizar assim. Seguindo uma vida comum, com filhos, vários deles, numa casa de campo em meio a natureza.
Quando fecho meus olhos e sinto o meu ser de um jeito profundo, me vejo assim.
Com uma família feliz em meio a um pomar cheio de vida.
Um pomar com frutas, árvores e plantas coloridas.
Me vejo contando história para crianças e vivendo plenamente o meu feminino. E esse cenário acaba sendo meu refúgio de paz que fica trancado a sete chaves que só é acessado em momentos extremos.
Geralmente, quando estou em busca da minha verdade mais profunda, me vejo assim.
Mas temo o retrocesso, a submissão, o isolamento, a não aceitação da vida.
Esse cenário de vida e família construída me assusta e me oprime.
Não sei porque temo tanto essa experiência.
Também tenho medo do sucesso, do reconhecimento e da vida financeira bem sucedida.
Tenho medo da fartura da riqueza financeira.
Ou seja, temo tudo o que serve à vida: família, prazer, dinheiro, sucesso.
Sou inteligente, sou jovem, sou atraente no físico.
Tenho condições de manifestar na vida prática realizações, mas queridos ancestrais.
Eu travo. Fico totalmente travada quanto ao fluxo financeiro, de empreendimento, de felicidade, de saúde e de prazer.
Talvez tenha sido essa a forma que encontrei de honrá-los em mim, e inclui-los na nossa família.
Me tornando um com vocês ou como vocês.
Percebo que há muitas situações de abuso em diversos níveis em nossa família também, sendo o sexual o mais evidente.
Até onde sei isso não aconteceu comigo, mas aconteceu com praticamente todas as mulheres da família do lado paterno, minhas irmãs foram expostas a isso através dos homens da própria família a contar: pai, tios e avô.
Digo e repito, isso não aconteceu comigo; não diretamente e não na infância, mas situações abusivas teve.
Se por um lado houve muitas situações de abusou que levou a dependência e privações de doações a vida por um lado; há o outro lado, o dos abortos que se sucedeu, sobretudo no aspecto que tange o lado materno da família.
Não sei dizer minha mãe, mas a mãe dela, a senhora minha avó me informou que houve casos sim, e de que a própria mãe dela, ou seja a minha bisavó realizava esse procedimento.
Talvez se origine daí esse meu medo da vida e de dar a vida.
Mas está aí um desejo contido meu também.
Creio que assim como eu que contêm seus desejos de realizações, outros membros da família também se privem para alcançar sucesso, viver com abundância e ter alguma realização.
Queridos antecessores, sou grata pelas histórias que compartilhamos e pela vontade de seguir em frente para a vida.
Algo que tem me feito muito bem é essa experiência de estar aqui perto de vocês, em comunhão, em busca de maior comunicação e integralização na alma da família.
Desde que soube que posso acessá-los e me comunicar com vocês venho me sentindo mais forte e energizada.
Vocês tem se tornando meu refúgio e acalento e me sinto grata em saber que posso contar com as suas histórias e com a força que vocês tão gentilmente disponibilizaram para nós filhos do mundo.
Enrolei bastante para contatá-los porque queria oferecer o meu melhor, creio que vocês devam ser assim em certos aspectos também e tudo bem.
A vida tem nos ensinado a usar os recursos que temos à nossa disposição.
Estou feliz e estou grata a essa experiência.
Feliz por estar cada vez mais perto de vocês.
E grata por viver.
Que a bênçãos que vocês espalham se perpetuem além de mim, mas que o que chegar a mim que eu faça bom uso!