São 10 horas e 10 minutos, depois de uma grande luta, cheguei.
Vejo uma mulher de meia idade, que anda para lá e para cá, parece nervosa, mexe no corpo da minha mãe, aperta a barriga, seca o suor da testa, oferece algo para ela beber. Deve ser um chá.
Remexi nos apetrechos que estão por ali, vejo tesoura, esparadrapo, uma bacia com água e outras coisas que não sei o que são. O quarto está iluminado com uma luz fraca e quase não se ouve barulho a não ser os passos da mulher que se prepara para me “pegar”.
Sei que há um clima de festa, pois é terça-feira de carnaval e isso lembra música, dança e muita alegria. A minha mãe chora de dor e eu sinto medo. A mulher estranha também está amedrontada. Ela mexe com a minha mãe e comigo também. Eu não sei o que devo fazer, não entendo como, mas eu quero viver e para viver preciso nascer.
De repente parece que a mulher se desespera, ela sai do quarto rapidamente e volta com o meu pai, que com uma cara de assustado, olha para minha mãe e para a mulher, que diz repentinamente:
Dono do boi que segura no chifre, está muito difícil, venha aqui e resolva isso.
Não sei se ela disse para ele o que fazer, ou se foi iniciativa dele, pois eu senti tanto medo que me encolhi todinha e não ouvia mais nada. Vi quando meu pai subiu em cima da cama. O que ele iria fazer? Eu sabia que ele queria que eu vivesse, relaxei um pouquinho e senti o peso de um dos pés dele em cima da barriga da minha mãe. Parece que ele tinha uma visão de raio xis, pois apertou no lugar exato, bem onde terminava o meu pezinho...
Se esse pezão chegasse um tantinho mais, esmagaria o meu pezinho, mas não deu tempo de entender o que estava acontecendo, foi “vapt vupt”. Saltei para o mundo e comecei a chorar. Percebi que todos ficaram aliviados, principalmente a mamãe.
Tive vontade de pedir desculpas a ela por causar tanta dor. Agora ela estava contente comigo, me acariciava e meu pai estava ali perto, eu me sentia segura. Eles me acharam lindinha, ou lindona, pois eu pesava quase cinco quilos. Entendi que foi justamente por conta desse tamanho que custei a passar por aquele caminho estreito.
O peso garantia a eles que eu estava saudável e apesar da dificuldade para passar, eu cheguei grande, forte e a luta não havia deixado sequelas. Depois de certo tempo, quando eu já estava arrumadinha, limpinha, com roupinhas macias e cheirosas e me sentindo bem quentinha, trouxeram para o quarto os meus irmãos para me conhecerem.
Eu percebi que tinha um irmão, uma irmã, e depois outro irmão. Todos agradeciam pela minha chegada. Era uma grande alegria. Eu sabia que antes do declarado primogênito haviam duas irmãs, e que depois de mim ainda viriam dois irmãos.
Sessenta e três anos depois, vejo pela cortina do tempo que realmente não ficaram sequelas, não carreguei traumas, pois sempre soube que aquele parto em casa, com parteira, tinha sido dramático. Acho que minha mãe também não ficou com uma lembrança tão ruim, pois dois anos depois veio um irmão e em seguida o caçula.
Não carreguei sequelas ou traumas, apenas uma enxaqueca que apareceu depois que minha mãe voltou para a Casa do Pai.
O pensamento de que ser gordinha e grande significa saúde começou a se manifestar aos 26 anos e encerrou-se aos 61 anos, quando tomei consciência disso.
Cheguei chegando... eram 10 horas e 10 minutos do dia 17 de fevereiro de 1958, uma terça-feira de carnaval.
Vamos dançar e cantar esse samba lindo que é a vida.
Gratidão pela vida, por todos que vieram antes e depois de mim.
