A história que tenho a falar não é sobre a minha pessoa, mas de uma colega de trabalho. Depois de ouvi-la, fiquei pensando o quanto essa criança precisou “crescer” tão rápido, mas foi de maneira disfuncional porque ela não teve todos os aprendizados necessários para se tornar uma adulta com confiança, sem medo de enfrentar o outro. Passando alguns dias, eu pedi à ela a permissão para publicar e ela permitiu. Eu mudei os nomes das pessoas para manter a sua integridade.
Sua história me chamou a atenção e me emocionou de tal forma que fiquei vagando dias com o que ouvi e imaginei quantas crianças passam pelo mesmo sofrimento e quantas conseguem seguir adiante. Apesar de tudo ela não mostra raiva ou mágoa apenas “deixou” pra depois.
A história é a seguinte: Eu trabalho com uma técnica de enfermagem, a Mari e uma auxiliar, a Graça. As duas se conhecem há mais de 30 anos. A Mari é muito rápida em tudo que faz e não tem tanta paciência. Já a Graça é muito devagar e quando a gente começa a pedir um monte de coisas ao mesmo tempo ela fica toda atrapalhada. Na segunda-feira agora, a Mari tinha ido almoçar com a Graça num restaurante novo próximo ao trabalho e voltou indignada porque além de pagar um valor que ela achou claro, reclamou da comida e pior, reclamou da forma que a Graça tinha comido. Me contou que a Graça colocava o polegar na comida pra empurrar pro garfo, e que se sujou todinha, derramando comida. Quando ela me falou isso eu disse:
- D. Mari é sinal de criança que não teve ensinamentos de como comer. Ela deve ter tido uma infância difícil.
Mari me rebateu:
- Que nada. Ela tem uma irmã mais velha que cuida dela desde pequena porque a mãe dela morreu cedo. E a irmã é muito amorosa com ela. Também tem a tia que ajuda muito ela até hoje.
Quando foi ontem, estávamos nós 3 na sala e quando acalmou o trabalho eu mostrei a foto do meu filho em pé e rindo. Aí perguntei pra Graça como era a vida dela na infância. Ela me disse que teve uma vida difícil, que perdeu a mãe cedo, que foi criada pelas tias que eram muito rígidas. Aí eu perguntei: Mas e o seu pai?
A Graça me olhou e disse, vou contar minha história:
Meu pai era um home violento. Batia muito na minha mãe. Cansei de ver meu pai batendo nela, mas não sei até hoje o motivo. Minha mãe dizia que ia morrer cedo e que minha irmã mais velha tinha que cuidar dos irmãos. Minha mãe morreu aos 35 anos de infarto. Minha irmã tinha 14 anos e teve que cuidar de mais 5 irmãos, sendo que a mais nova tinha 2 anos. Meu pai chorava muito pela morte da mamãe. Depois de um tempo meu pai queria forçar minha irmã com ele (ele queria mexer com ela). Minha irmã tentou se matar. Minhas tias por parte de mãe quando souberam, levaram nós, as meninas, para ir morar com elas. Papai ficou só com os meninos. Éramos 3 casais. Um irmão faleceu. Quando eu fui morar com minha tia, ela era rígida. Eu não podia fazer nada. Ela me dizia que beijar, namorar engravidava. Cresci assim, com "medo" de ter uma família como minha mãe. Quando minha irmã casou (a mais velha) me levou pra morar com ela. Tive relacionamento depois de bem velha (ela não disse a idade). Tive relacionamentos mas nenhum criei afeto. Não queria ficar como minha mãe.
Quando ela contou tudo a sala ficou mais silenciosa e a Mari ficou olhando pra ela. Quando estávamos saindo, a Graça saiu primeiro e eu e Mari viemos no caminho conversando e ela me disse:
Ela nunca me falou sobre isso. Eu olhei pra ela e disse: Agora a senhora entende o do por quê ela é assim? Atrapalhada, devagar, não responde quando brigam com ela e quando ela tenta explicar se atrapalha com as palavras. Uma criança de 8 anos que não teve amor de pai nem de mãe.
Os meus olhos se encheram de lágrimas e ali percebi o quanto as vezes somos injustas com ela. Brigamos com ela e no entanto é uma criança.
Ela nunca nos falou, mas a gente acha que ela é homossexual. E como ela falou: Minha mãe não tinha o direito de se cuidar. Meu pai não dava tempo pra ela. Acho que ela nunca foi ao ginecologista porque papai não "saia de cima" dela. Eu vi várias vezes assim como quando ele batia nela.
Eu não planejei as perguntas, elas foram surgindo. O campo me informou.
Pensei em passar uns Florais pra ela e penso que o Chicory, o Holly, o Star of Bethlehem e o Chestnut Bud para iniciar. Tem muito trauma, muita dor e muita falta de amor. É tanto, que no dia dos pais ela disse: Meu pai é Papai do Céu. Eu falei: Mas você tem seus pais em você. Ela repetiu: Meu pai é Papai do Céu.
Ela segue a doutrina espírita. A gente sempre conversa. Foi uma tarde de aprendizados.