Pode parecer estranho, mas já ouvi tantas vezes esta afirmação que já até me acostumei a ela. Em quase todos os lugares onde chego alguém vem logo afirmando isso.
É como uma senha para se aproximar de mim ou tentar criar um elo de comunicação comigo. Quase sempre fico sem ter o que dizer à pessoa que chega dessa maneira.
É que eu acho bem estranho que alguém use este recurso de forma consciente acreditando que é algo digno ter uma avó que foi pega a laço por quem quer que seja.
– Você sabia que eu também tenho um pezinho na aldeia? – ele diz.
– Todo brasileiro legítimo – tirando os que são filhos de pais estrangeiros que moram no Brasil – tem um pé na aldeia e outro na senzala – eu digo brincando.
– Eu tenho sangue índio na minha veia porque meu pai conta que sua mãe, minha avó, era uma “bugre” legítima – ele diz tentando me causar reação.
– Verdade? – ironizo para descontrair.
– Ele diz que meu avô era um desbravador do sertão e que um dia topou com uma “tribo” selvagem lá por Goiás.
– Eita. Que história interessante – falo arregalando os olhos.
– Pois é. Meu pai disse que meu avô contou que minha avó era muito linda e que olhou bem nos seus olhos antes de correr. Meu avô ficou enfeitiçado por ela. Imediatamente ele tirou o laço do lombo do cavalo em que estava montado e a laçou.
– Que incrível – digo.
– Ela, no começo, esperneou, gritou, chamou pelos outros “índios”, mas ninguém voltou e meu avô a levou para casa e com ela teve nove filhos.
– Uau!
– Meu avô contou para meu pai que vovó era baixinha, tinha cabelos longos bem pretinhos e olhos puxadinhos. Ela ficava horas sentada na frente de casa penteando os cabelos e com os olhos perdidos no horizonte.
– Ela devia estar cantando a saudade de sua casa – disse para quebrar o clima sombrio.
– Meu avô dizia que ela ficou a vida inteira aguardando que sua “tribo” viesse resgatá-la. Nunca ninguém apareceu. Ela, no entanto, foi muito feliz ao lado do meu avô.
Minha atenção se fixou nesta última frase enquanto meu novo amigo se despedia dizendo que tinha sido um prazer me conhecer. Cumprimenta-me, me olha de cima a baixo, vira as costas e vai embora.
Apesar de ser comum esta situação nunca deixo de pensar nela. Acho esquisito quando alguém se orgulha de ter tido uma avó que foi escravizada por um homem que a usou durante toda uma vida e a obrigou a gestar filhos que provavelmente não queria.
Penso que a maioria das pessoas não se dá conta de que esta narrativa é repetida tantas vezes e de forma poética para esconder uma dor que devia morar dentro de todos os brasileiros: somos uma nação parida à força. Foi assim com os primeiros indígenas forçados a receber uma gente que se impôs pela crueldade e pela ambição; uma gente que tinha olhares lascivos contra os corpos nus – e sagrados – das mulheres nativas.
Foi assim com os negros trazidos acorrentados nos porões de navios para serem escravos de pessoas que se sentiam superiores apenas por conta da cor de sua pele; as mulheres eram usadas como domésticas e como amantes gerando “brasileiros” que eram desqualificados porque cresciam sem pai.
O Brasil foi “inventado” a partir das dores de suas mulheres e é importante não esquecermos esta história para podermos olhar de frente para nosso passado e aprendermos com ele.
O Brasil precisa se reconciliar com sua história; aceitar que foi “construído” sobre um cemitério.
Apenas dessa forma saberemos lidar com criatividade sobre a verdadeira história de como “minha avó foi pega a laço”.
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Por: Daniel Manduruku
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Emilia Wien.
Destaque: Velha Tenharim. Foto de Ana Lange.