Bert Hellinger contou em inúmeras ocasiões, como aconteceu a intervenção de um
terapeuta que o confrontou de tal maneira que mudou muitos aspectos do seu mundo interior, suas compreensões e seu olhar sobre o trabalho terapêutico.
A pergunta que o terapeuta lhe fez foi: “O que você sacrificaria primeiro, as pessoas ou as ideias?”
Essa pergunta é, a meu ver, a grande pergunta que define como nos relacionamos com os outros e também com nós mesmos.
Em muitas ocasiões os bloqueios emocionais, as dificuldades de lidar com nossas feridas, a falta de consciência ou nossa incapacidade para nos amarmos, se traduz em uma estranha decisão interna.
Vi no meu processo pessoal e no de centenas de alunos e pacientes: ficamos
hipnotizados com nossas próprias narrativas.
Vi pacientes que tinham uma boa história, bem argumentada, sem nenhuma falha no roteiro e com a tensão dramática necessária para que seja atrativa ao ouvinte.
Isso lhes permite justificar seu mundo e o controle para não sentir suas emoções.
Têm uma boa história, quase diria que vão ficando dominados por ela, mas eles não possuem a si mesmos. São mais fiéis à narrativa do que as profundezas e batidas do seu próprio coração.
Sempre gostei, por ser clara e direta, da expressão de Joseph Campbell: “ Definir a vida te prende ao passado”.
Quer dizer que: a falta de conexão com nosso ser originário e passível de mudanças nos faz ficar presos às nossas fidelidades e lealdades inconscientes, ao nosso passado, à nossa narrativa ferida e à nossa estrutura neurótica.
Fechando assim a porta para novos futuros e para nosso processo interior. Definitivamente nos fechamos para nossa própria viagem heroica.
A expressão mais radical deste padrão encontramos nos fanáticos. Por exemplo, os
fanáticos religiosos.
Estes necessitam “limpar” o mundo de infiéis, porque na realidade sua extrema fidelidade à sua narrativa faz com que eles mesmos desapareçam.
Retomando a ideia da frase que Hellinger escutou, poderíamos dizer que eles têm
sacrificado às pessoas, incluindo a eles mesmos, antes de sacrificar às suas ideias.
Vamos levar esta reflexão para a maneira com a qual nos relacionamos com nós
mesmos.
Somos um bom aliado de nossa vida ou somos a voz ferida, fanática que nos
culpa, aponta e grita em nosso silêncio?
Alguém poderia dizer, dando uma resposta cheia de vocabulário terapêutico, que somos as duas coisas. Mas então quem tem a quem? Somos nós quem observamos essa voz que fere ou esse feitiço narrativo nos tem dominados e não podemos identificar onde ficou a nossa essência?
Por trás de um comportamento assim, sempre encontramos um menino/menina
interior ferido, assustado e sozinho que não encontrou o amor, a compreensão, nem o convite a se expressar como possa ter necessitado.
Sem a alegria do menino ou da menina interior, a lira de Orfeu que todos levamos dentro, deixa de tocar, já não soa, o mundo perde a magia da música e dos cantos da natureza.
Como escutei uma vez de Stephan Gilligan: o fanatismo é a ausência de musicalidade na vida. A existência perde o brilho.
A dança, como metáfora de continuidade orgânica da vida, é a maneira de voltar a ser seres fantásticos e repletos de histórias.
Deixando de lado a fidelidade doente a somente uma narrativa que pode nos consumir, provocando que venhamos a viver a vida de forma automática, mas sem ter consciência de existir nela.
Somente nós podemos ir em busca de nosso menino/menina interior e nessa viagem interna podemos nos libertar da fidelidade à ideia e à narrativa, para encontrar a alegria de nos sentirmos dentro de nós e de escutar nossa própria música.
Dessa forma, sermos dignos do nosso desejo, da nossa necessidade, dos nossos limites e, definitivamente da nossa vida.
A viagem interior que permite o abraço sensato a nós mesmos, é o antídoto do feitiço de ficarmos dominados pelas nossas narrativas feridas ou estranhas e loucas ideias.
Se nós tivermos a nós mesmos podemos dançar com a música do Universo, voltaremos à vida, a ser o rio que jorra e corre entre as árvores do bosque.
Pode ser que não tenhamos razão e nem sejamos tão desordenados, mas teremos nossa vida e a alegria e brilho que há nela. E não há tesouro maior que nos sentirmos vivos e puros em nossa própria vida.
Texto de Jordi Amenós Álamo
Tradução de Hérika Santos
Revisão de Lorena Mercucci.