Se eu pudesse planejar meus dias em momentos, eu o faria assim: contrabalancear com cuidado de nuvem os pesos e as levezas. Os pesos inevitáveis, tratá-los com leveza. O demasiado leve, deixá-lo passar sem muito se apegar a ele. O que for leve pairará ao seu alcance sempre.
Outros momentos mais seriam aqueles de paz de espírito, de cara de nenê de colo que acabou de mamar. É um momento de tanta, mas tanta paz, que o mundo lá fora apaga, e sobra a sua única vela iluminando um quarto inteiro. Ah se eu pudesse. Mas como nem custa nem é proibido sonhar, digo então que o que eu faria era não abdicar de modo nenhum de estar com meus amigos. Compartilhar chão e calor, agregar um sonho a outro, amando ou odiando, mas acesos em brasa quente. Não poderia abrir mão de criar sempre os momentos com os animais, porque vêm deles os ares mais primitivos de mim, e estou dentro deles, como um pequeno no carrossel. Não digo montar cavalos, nem tão pouco montar dragões. Falo dos cães. Um momento com o meu atravessa a minha eternidade de antes, muito antes. Não haveria, se eu pudesse planejar os momentos, um mundo sem horinhas de banhos de cachoeira, ou suspiros ao luar. Não poderia deixar de ter coqueiral, borboleta e água de rio. Não poderia deixar de ter céu azul ou cinza de cair chuva. O dia de troca de roupa de cama anunciando o cheiro de vó, de quando era miúdo e me aninhava no seu cheiro de alma lavada. Cheiro de guarda-roupa de vó, esse momento não poderia deixar de entrar na agenda dos pequenos prazeres. E minha vó, se eu pudesse, seria eterna, e cuidaria de mim velhinho. Seríamos nós dois velhinhos que num toque mágico simplesmente morreriam de mãos dadas, num longo suspiro que lembraria um orgasmo. Haveria poucas leis, mas uma delas seria duramente fiscalizada tamanha a sua importância: manter mala arrumada sempre. Nesse mundo que, se eu pudesse, materializava agora, seria imprescindível estar sempre pronto para aventurar-se por cidades nunca vistas, cidades que precisam ser revistas por que já moram dentro de nós, e cidades invisíveis ou só vistas de tempos em tempos, quando emergiam de outros mundos que elas mesmas frequentariam. Mas há de lembrar-se de viajar leve, sem riscos de cansar-se com o peso. Não faltariam os bons companheiros, os livros. Alguns deles chegariam brancos em minhas mãos e à medida que os lesse, passe de mágica, eles mesmos se escreveriam e, como os pergaminhos de Gabriel García Marquez, me leria ali, em tinta, tocando o papel ao vivo e em cores, minha história se escrevendo. Outros já viriam escritos, mas de tempos em tempos, relidos, inexplicavelmente se transformariam, com letras e palavras mudando de posição, como num truque já tão lugar-comum para os poetas. Poetas!... esses existiriam para as palavras e para nos prover de uma fantasia que nos lembrássemos sempre quem no fundo éramos.
E nesse mundo, enfim, não poderia faltar o amor, que só de ser chamado, em mantras sagrados, chegaria comigo já desmaiado e entregue aos seus braços. Me acariciaria e me colocaria pra dormir. No meu sonho, nos levantaríamos, eu e o amor, e nos poríamos a viver dentro desse mundo em que estamos eu e você e a realidade. De mãos dadas, com o amor ao lado, seria mais fácil sentir o cheiro de minha vó ou dividir os momentos em desproporções imensas, sempre favorecendo os mais felizes. Depois dormiríamos, confundindo a realidade e o sonho, mas imersos numa energia profunda de aceitação e reconciliação com a vida.
Leo Costa