Conteúdo autoria: Olinda Guedes
Realizado em Guarapuava dias 04/10/19
Quando em um sistema, há sofrimentos que não são elaborados, experiências difíceis que trazem o sentimento de perpetrador ou de vítima, isto permanece como uma memória traumática. Permanece em aberto, carregando a fome, a sede, a necessidade de reparação dos danos experienciados. Quando um sofrimento é muito grande, ele se guarda dentro dos sistemas, quão mais intenso for um sofrimento, mais a geração onde houve este sofrimento silencia. A próxima geração também. Geralmente estes traumas começam a se mostrar a partir da 3ª geração, quando então já foi possível se afastar dos fatos que causaram as memórias traumáticas.
O esquecimento, o silenciar é uma forma de sobreviver ao trauma, lembrando que trauma é tudo aquilo, todos os fatos que fazem com que o indivíduo sinta que sua vida corre perigo. Portanto, as experiências com adversidade climática ou situações políticas podem causar não somente traumas coletivos, mas também individuais. O inconsciente coletivo entende que não falar sobre um evento traumático, torna-o menos perigoso. Existe aqui o que Jung chamava de “pensamento mágico”. O bebê até 6 meses experiencia a vida assim: para o bebê, a mamãe existe quando ele a vê. Se ele não a vê, ele chora porque ela não existe. Esse é o pensamento mágico que atua diante de fatos traumáticos. Se eu não pensar sobre isso, se eu não falar, se eu não comentar, não existe... logo todos os que participam de eventos traumáticos seja na condição de perpetrador ou de vítima, são convidados a silenciar.
Se nós não admitirmos que existiu, não existirá. Porém, essa é apenas uma forma de sobrevivência aqui, porque houve um fato traumático, só não se sabe lidar com ele. Portanto, o trauma permanece e porque é ignorado, o indivíduo consegue sobreviver. Passa-se uma geração, duas gerações, na terceira geração já torna-se possível perceber ao menos as memórias, porque então já se sobreviveu.
Quando o organismo, quando a vida do sistema já experienciou durante um tempo suficiente que é possível sobreviver, estas memórias começam a sair do subterrâneo. E essas memórias saem e podem ser vistas por meio de sofrimentos inexplicáveis, por meio das angústias, por meio das ansiedades, por meio dos tiques, por meio também da gagueira, da depressão, da bipolaridade, das psicoses, das neurotipias (autismo, dislexia). Por meio desses sintomas inexplicáveis, essas memórias traumáticas vêm à tona. Elas podem ser acessadas, a verdade é revelada. Por exemplo, quando existe uma psicose, ela é sempre diferente nas suas expressões. Alguém com este sofrimento pode ter um delírio, de que mesmo que ela tranque os seus bens num cofre, alguém poderá levar. Ela poderá ter uma alucinação e dizer para toda a família que devem se esconder embaixo da mesa e deixar as portas e janelas abertas porque há um inimigo chegando, mas se ver que toda casa está aberta vai pensar que quem estava ali fugiu e então esse inimigo desistirá indo procurá-los em outro local e então ali, todos sobreviverão.
Se forem feitas pesquisas acerca das famílias, das histórias sistêmicas destes indivíduos, uma psicogenealogia, uma pesquisa histórica, será possível constatar exatamente quando e com quem aconteceu aquilo que aqui parece loucura. Um trauma impede a vida de ir pra frente. Basta que o estímulo tenha um mínimo de semelhança com o evento traumático, para disparar as memórias do trauma.
Um fato traumático tira o futuro do indivíduo. Um fato traumático puxa para trás. Enquanto estes fatos traumáticos não forem elaborados, não se tornarão passado. Todos estes sintomas revelam dinâmicas sistêmicas.
A psicose trás a dinâmica sistêmica da morte, do assassinato, do perigo concretizado. Alguém morreu, alguém matou, colocando em risco a vida de outros. A depressão carrega a dinâmica sistêmica daquele que teve que descer rápido demais para dar a si mesmo aquilo que seria um direito humano receber da mãe. É da mãe que recebemos o entusiasmo, a alegria de viver, o sentido da vida. A depressão significa: “Querida mamãe, onde está o seu coração? O meu coração está vazio te esperando.”
A bipolaridade é a memória do perpetrador e da vítima. Entre 18 e 24 semanas, a memória está identificada com uma parte, no próximo período, estará presente na memória da outra parte. Por exemplo, num primeiro período o indivíduo pode ficar eufórico, sentindo-se totalmente empoderado, sentindo-se totalmente capaz. Compra tudo, resolve tudo, faz o bem para todos os mendigos do mundo, vê soluções em tudo. Namora quem quer, faz sexo com quem quer. É o empoderamento desequilibrado, desproporcional ao contexto. Portanto, é uma identificação com a memória do perpetrador. O assassino é um psicótico, o assassino está a serviço do corpo de dor do seu sistema. Ele está em transe.
Em alguns povos nativos, isto é tratado como se fosse um demônio ocupando o corpo da pessoa. Existe um costume de um povo africano, de que quando alguém assassina uma outra pessoa, comete um crime, esta pessoa vai para o centro de uma roda com a presença de toda a comunidade, principalmente dos anciãos e então ela tem os seus olhos vendados e eles cantarão durante muito tempo os seu nome, chamando a pessoa de volta até que ela possa se lembrar quem ela é. Na sequência, ainda com os olhos vendados, depois que todas as pessoas percebem que ela está lembrando quem ela é, um bebê recém nascido é colocado em seus braços. A venda é retirada de seus olhos, ela olha para aquele bebê e chora arrependida de tudo o que ela fez. Então o bebê é devolvido para seus pais, todos inclinam a sua cabeça e este indivíduo sai do centro da roda e segue livre. Relatos de pesquisadores dizem que é raríssimo acontecer crimes e muito mais raro é a reincidência. Portanto, os povos nativos sabem que um indivíduo, quando faz algo contra a vida, está fora de si. A consciência coletiva, a consciência da “manada”, é sempre maior do que a consciência individual.
Quando há um fato traumático, todo o sistema entra em risco e um indivíduo carregará a obrigação de processar essa memória, de transformar isso para que fique no passado. O indivíduo que carrega a bipolaridade, depois que se identificou com a memória do perpetrador, vai se identificar com a memória da vítima. Então será uma fase de impotência, de medo, de incapacidade, de fragilidade, de baixa estima, de querer se esconder, de ter medo de falar comas pessoas, de apatia. É a memória da vítima se expressando. Uma bipolaridade se caracteriza, portanto, com uma identificação alternada de perpetrador e vítima, de poder e fragilidade. Mas isso não acontece no mesmo dia. São ciclos de meses e que o indivíduo necessita de suporte medicamentoso, porque o remédio dará à pessoa a condição de ser um pouco ela mesma e para ter espaço de lidar com estas memórias.
Terapia é um luxo, é opcional, é auto conhecimento em qualquer outra etapa da vida. É um privilégio, é uma escolha inteligente é um diálogo de qualidade acerca de si mesmo e da vida. Entretanto, em se tratando das noites escuras, terapia é obrigatório. Nas noites escuras, ninguém consegue dar conta sem o suporte da terapia. É muito perigoso ficar só, não apenas fisicamente, mas é muito mais perigoso o sentir-se sozinho e solitário na noite escura em que se está atravessando. Toda noite escura tem o perigo iminente da morte.
A gagueira é a identificação com a memória do pânico da vítima. O autismo são memórias primárias de ter sido abandonado, de ter ficado sozinho. A dislexia carrega a memória daquele que testemunhou um assassinato, daquele que viu e não pode fazer nada. É como se a mente carregasse a memória do grande medo de ver o perigo chegando e se concretizando. O medo, a sensação de perigo, estão por trás do “branco” na memória. O medo epigenético. Quem tem dislexia, tem “brancos” na memória permanentes. Por exemplo, ou vê o cavalo ou vê a cerca. O trauma faz isto, o trauma torna a atenção parcial. Torna a atenção focada na sobrevivência. Portanto, do ponto de vista sistêmico, nós consideramos um déficit de atenção não como falta, mas como a atenção em outro lugar, a atenção no essencial. Sistemicamente seria correto dizer: atenção focada no que é essencial, na sobrevivência, na elaboração de memória traumática.
Quando o sistema corre perigo, mesmo que tenha sido em 1800, o indivíduo que carrega essa tarefa, não terá atenção disponível para aprender matemática ou língua portuguesa ou saber onde deixou o sapato. Sua atenção estará fora do espaço/tempo, estará no agora onde a vida corre perigo.
Então, eu atendi um rapaz que tinha como diagnóstico dislexia severa. Ele estava profundamente depressivo, não queria sair de casa e a única atividade que ainda o animava, era andar a cavalo. Então nós fomos andar a cavalo e como eu não sabia cavalgar, ele tornou-se o meu professor. Ele veio até a minha casa e nós fazíamos terapia 24h, andávamos a cavalo, preparávamos o almoço, ele lavava as louças, andava de bicicleta e voltava para casa. Depois de dois ou três meses, ele estava muito melhor e disse: “as mulheres que eu quero namorar são sempre mais velhas e tem filhos.” Então o pai deste garoto relatou que o seu bisavô havia ido para a guerra e quando voltou da guerra, sua esposa tinha um bebê nos braços sendo amamentado. Ainda em batalha, alguém disse a ele que a sua mulher estava tendo um caso. Apesar daquele filho realmente ser dele e de sua esposa ser uma pessoa fiel, ele foi tomado por aquela fofoca e num impulso de ciúmes, ele fugiu da batalha e assassinou a sua esposa. Ela morreu e aquela criança que estava em seus braços era um menino, sendo então o bisavô do garoto. Depois de trabalharmos em várias constelações, ele tornou-se livre e pode estabelecer um relacionamento saudável com uma mulher possível com a qual tem um filho de 5 anos.
As nossas jornadas de cura são pessoais e intransferíveis e as noites escuras, ainda mais. O bordão e o cajado são o Amor incondicional, que auxilia pessoas que necessitam de cura.
Quando vivemos noites escuras, necessitamos de medicação e terapia, porque grandes traumas sistêmicos estão acessados, estão em evidência. É preciso entre 1 a 3 anos de terapia. As noites escuras não passam de repente e a luz divina é sempre a consciência de que todos trabalhamos para os nossos sistemas, de que não existe sofrimento em vão e de que 100% do tempo, cada um tem uma tarefa importante dentro do sistema. O senso de propósito e de transcendência é o que nos mantém vivos.