Assim como em diversas modalidades esportivas, os atletas precisam dar alguns passos para trás, a fim de ganhar impulso para lançar-se adiante, a vida por vezes, necessita desse exercício. Voltar às fontes, mergulhar nas origens, ajuda-nos a seguir adiante com mais força.
Há sessenta e cinco anos atrás, à beira do Rio Cuiabá, numa pequena Comunidade chamada Veredas, localizada em Santo Antônio de Leverger, aproximadamente 35 km de Cuiabá, capital de Mato Grosso, em uma noite de luar, um jovem pai, atravessa o rio numa pequena canoa para buscar a parteira porque sua esposa está prestes a dar à luz pela terceira vez. A primeira foi anjinho que não pode ficar nesta terra, a segunda trouxe um garoto serelepe e sorridente, a terceira uma menina apressada que não esperou a parteira. Conta o pai, que quando a parteira colocou o pé fora da canoa, antes mesmo de alcançar o barranco, disse a ele: já nasceu, estou ouvindo o choro. De fato, ao chegarem na casinha de Maria, já encontraram a pequenina mulher que mais tarde seria chamada com seus diversos nomes, Neuza, Branca, Táta, Pedrosa, Dona Branquinha, mãe, mamãe, tia, vó, madrinha, nora, sogra, pronta para a vida. E a vida permitiu que ausentasse de sua terra natal aos três anos de idade. A partir daí, Veredas foi se tornando apenas um nome de lugar, que se misturava com os nomes de pessoas nas histórias contadas, ou pedaços de conversas que se ouvia entre a mãe, a tia Chiquita e tia Ninita.
De repente, como num passe de mágica, mais de 60 anos depois, estávamos lá, naquele lugar, que para ela evocava lembranças nítidas de um passado, que na verdade, nunca ficou para trás. Para mim que nunca havia estado ali, pareceu-me familiar. Pois as pessoas nos receberam com abraços e sorrisos, e falavam de papai e mamãe como se eles tivessem estado ali ontem. E eu que sei que eles moram no céu há quase trinta anos, sinto uma saudade estranha, como se algum dia tivéssemos estado todos juntos, ali naquele lugar. Uma sensação de que tudo é diferente, mas nada mudou.
É verdade que a água do rio não é a mesma, mas o medo e o prazer de estar no barranco contemplando a correnteza não mudou. As árvores, apesar do tempo seco, ainda fazem sombra e oferecem um frescor que ameniza o calor cuiabano. O Engenho, ah o engenho... do qual ouvi tantas histórias de moer a cana, de fazer melado, de rapar o tacho... É claro que o mecanismo da tarefa modernizou-se um pouco, mas a rapadura ainda é a mesma, com seus sabores tão originais das frutas de cada época. Verdade, aquela gente ainda faz rapadura e mantém a tradição de vender e também dar de presente aos compadres e comadres e nós fomos agraciadas com essa doçura.
As casas também se modificaram, o adobo e a palha cederam lugar aos tijolos e telhas, com direito a pinturas nas paredes e “louças” nos banheiros, camas dividem espaços com as redes e as janelas disputam com os aparelhos de ar condicionado o direito de refrescar o morador. O pote de barro foi substituído por um bebedouro moderno, mas sobre ele, um conhecido caneco de alumínio. Nas paredes fotografias de parentes queridos e também dos que se tornaram famosos, na capelinha as imagens dos santos de devoção.
Quando alguém menciona a nossa rápida visita, como a “presença espiritual de tia Maria”, lembro do “pensamento sistêmico”, que tenho estudado com Olinda Guedes: “Para um sistema só existe um tempo: o agora. Nem passado, nem futuro. Somos nossos pais, avós, bisavós, trisavós e todas as gerações antes. Todos eles estão em mim e eu estarei em todos os meus descendentes”. Só assim é possível compreender a felicidade que senti ao estar naquele lugar, com aquela gente que eu nunca havia visto com os olhos do corpo, mas que a minha alma reconhecia como família, ligados pelo eterno laço do amor.
A minha geração sabe que a vida deles não deve ter sido fácil, com certeza houve dor e sofrimento, cada um foi construindo sua estrada com a energia e a força que dali receberam. Muitos que dali saíram e conquistaram prosperidade, principalmente por meio dos estudos acadêmicos, para ali voltaram, se não definitivamente, pelo menos de tempo em tempo, como que para não perder a referência.
E foi exatamente isso que fomos fazer ali, eu e minha irmã, usufruir do encontro com as nossas raízes, e nesse contato com nossas origens, sentimo-nos mais uma vez empoderadas com as forças e as bênçãos que nos vem de nossos ancestrais. A eles e a elas, uma palavra: GRATIDÃO!