Quando eu era menina, eu e meus irmãos brincávamos de “ver a nuvem virar”.
A brincadeira consistia em deitar-se no chão, um ao lado do outro e olhar para o céu. Cada um escolhia a sua nuvem e ficava observando os movimentos e as figuras que se formavam, de repente, radiante de alegria alguém gritava: “olha a minha virou um cachorrinho”, o outro dizia “a minha virou um elefante”, “a minha virou um avião”, “olha aquela é um homem de chapéu”, e as mais diversas figuras desfilavam diante dos nossos olhos curiosos e criativos.
E assim passávamos as tardes, contemplando aquela beleza de reconhecer as figuras desenhadas no céu.
Naquele tempo não sabíamos nada sobre fenômenos da natureza, e imaginávamos que as nuvens eram a antessala do céu.
Penso hoje, que a minha mãe deveria achar bom quando estávamos brincando de “ver a nuvem virar”, pois ficávamos, relativamente, quietos. Ninguém estava correndo, chutando bola, subindo em árvores e assim não havia risco de machucar ou de brigar.
Se bem, que vez ou outra surgia uma discussão, quando havia discordância quanto a aparência de alguma figura. Há sempre alguém que “vê um chapéu quando sabemos que é uma jiboia digerindo um elefante” (Pequeno Príncipe).
Com o passar do tempo e os afazeres de gente grande, eu deixei de olhar para as nuvens. Até que, aos vinte e três anos de idade, ao enfrentar os desafios de adaptação a um estilo de vida muito diferente do que eu estava acostumada, algumas vezes senti vontade de chorar de saudades.
Na falta das nuvens, voltei-me para a poesia, fui enchendo páginas e mais páginas de diários. Um belo dia, deparei-me com uma poesia que tinha um som, num ritmo que me tocava profundamente a alma.
Ela dizia assim:
“Foi vendo as coisas que eu vi, foi procurando entendê-las
Foi contemplando as estrelas que eu aprendi a rezar.
Foi perguntando por ti e se é verdade que existes,
Que não nos queres ver tristes
Que eu comecei a cantar.
Foi no balanço das ondas foi no murmúrio do mar.
Foi vendo o vento que vinha, voltar levando as nuvens consigo.
Foi onde as águas se encontram e os rios entram no mar.
Que eu aprendi novamente a rezar, e me tornei teu amigo.
Foi quando as folhas farfalham numa algazarra sem par, foi quando as aves a tagarelar
Vão procurar seu abrigo.
Foi quando a tarde se esconde
Lá no outro lado do mar,
Que eu comecei, de repente, a chorar,
E me tornei teu amigo.
Foi vendo nuvens e rios e vento e chuva e luar.
Foi vendo o sol lá no céu a brilhar, iluminando os meus dias.
Foi vendo os grandes mistérios, que ninguém sabe explicar. Foi vendo a vida teimando em voltar,
Que eu descobri que existias".
Essa poesia se chama Quietude, é cantada pelo meu velho amigo padre Zezinho, num ritmo de violão que lembra simplicidade, acho que naquele tempo não havia bandas católicas com instrumentos sofisticados, era tudo a base de voz e violão.
Esse ritmo acalentava a minha alma e trazia de volta ao meu coração o sol, as folhas, os rios, os ventos, as aves, as chuvas, as tardes, o luar. Essas palavras e imagens faziam sentido em mim, pois sempre fizeram parte do meu mapa de mundo, bem como algazarra, tagarelar e mesmo o mar que eu nem conhecia, mas imaginava, soavam-me familiar.
E principalmente, “vendo o vento que vinha, voltar levando as nuvens consigo”, esse verso me transportava para aquela infância feliz, onde, para estar segura e tranquila bastava ter os meus irmãos deitados ao meu lado e olhar o céu e perceber as nuvens.
Hoje, quarenta anos depois, essa música ainda me faz contemplar a minha criança interior e me lembra que “sempre é tempo de ter uma infância feliz”.
Quando “as coisas de gente grande” ameaçam tirar a minha paz, essa música consegue me trazer de volta ao meu Eu e colocar-me em um “Estado de Presença”, capaz de sentir a conexão com o planeta e todo o universo devolvendo-me a paz que só encontro nos braços de Deus.
É bem verdade que a arte transforma vidas e talvez a música seja dentre as artes a que mais realiza milagres.
Termino o texto aqui, porque preciso ir lá fora dar uma olhadinha nas nuvens.
#constelarcommusica