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CARTA AOS MEUS ANTEPASSADOS

CARTA AOS MEUS ANTEPASSADOS
ANTONIO JOEL LEITE
jul. 2 - 41 min de leitura
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Estive relutando, ou melhor, procrastinando em escrever essa carta aos antepassados. Já faz algum tempinho que assisti os primeiros vídeos do módulo 1 e quando chegou na lição 6 onde se pede para escrever esta carta, entrei numa espécie de cantiga de roda; alguns a conhecem como "ciranda cirandinha".

Acabei girando, girando, cantando alguns versos ao vento, mas de concreto não fiz nada, ou melhor, não escrevi nada.  Digo isso, porque nestes últimos três meses ou mais, fui dando uma desculpa aqui, outra, ali, outra acolá, mas sem jamais colocar a tinta no papel.  

Outro dia falava para a minha chefe que eu sou um pouco platônico, sempre vivendo no mundo das ideias. Acho que eu estou mais para aquele personagem da Escolinha do Professor Raimundo, o caipira Joselino Barbacena. Sempre que o professor Raimundo se dirigia a ele para fazer uma pergunta, começava dizendo: “Ai, meu Jesus Cristinho, já me descobriu eu aqui de novo! Será impossíverrr? Larga d’eu, sô!”. 

Ele começava suas histórias lembrando: “Quando eu era criança pequena lá em Barbacena…”.  

Então, lá vou eu aqui escrever algumas linhas aos meus antepassados. Parafraseando 'seo Joselino Barbacena', também fui criança pequena lá no interior do estado, mais precisamente em Fátima do Sul/MS.

A história de meus antepassados começa lá no interior do Pernambuco. Curiosamente, sei pouca coisa dos meus bisavós e avós vivendo lá no Pernambuco.

Pelo lado paterno, é bem possível que meus antepassados sejam europeus, pois Pernambuco teve um período sob a influência dos holandeses; não é a toa que minha avó paterna tinha olhos azuis, bem como alguns dos irmãos dela.

Já do lado materno dos meus antepassados, existe sim a possibilidade do meu avô ter origem indígena, apesar de não saber quase nada de meus bisavós maternos.

Soube também que, minha bisavó paterna ficou viúva com alguns filhos ainda nova, porém não quis mais casar-se novamente. Não passava necessidade, pois tinha algumas posses, mas sempre trabalhando para criar os filhos.

Já de minha bisavó materna não tenho quase nada de informação; salvo uma vaga história que minha mãe conta, dizendo que foi pega no laço para se casar. Parece que vivia no mato; minha mãe fala que era bugre; nesse caso, índia mesmo pelo que tudo indica. Preciso investigar isso melhor depois.  

Vale dizer que, minhas duas avós (materna e paterna) eram irmãs; consequentemente, meus pais eram primos e mesmo assim se casaram. 

Meus avôs paternos (Antônio João e Iria) trabalhavam na roça lá no interior do Pernambuco. Vivendo as dificuldades de sempre que quase todo sertanejo nordestino passa quando trabalha na roça e principalmente numa região semiárida, onde a seca exerce um papel preponderante na dinâmica agrícola, meu avô foi primeiramente com outros parentes para São Paulo, onde ficou por 2 anos. Depois, retornou para buscar toda a família.  

Meu pai tinha 5 anos quando saiu de Bom Conselho no Pernambuco.  Nas condições da época, viajando de "pau de arara" chegaram ao destino para recomeçar. Ficaram algum tempo em São Paulo trabalhando em terras arrendadas e, depois, ouvindo os rumores que o Governo Vargas na época estava fazendo a famosa "reforma agrária" em Mato Grosso, decidiram aderir a marcha para o Centro-Oeste. 

Historicamente, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) foi implantada em 1944 no antigo sul de Mato Grosso (SMT). Sua criação se deu pelo decreto-Lei nº 5.941 de 28 de Outubro de 1943 e fazia parte do projeto Marcha para Oeste inserido na política de colonização do Estado Novo brasileiro.

Meu avô mais uma vez desceu até a região para conhecer o território. Chegando na colônia, juntamente com outros tantos nordestinos foram os pioneiros da região, acalentando o sonho de ter seu pedaço de terra e poder criar a família.

Numa região que era totalmente inóspita, onde havia somente mata virgem e bichos selvagens, meu avô foi assentado em seu lote com os demais nordestinos que foram para o lugar.  As dificuldades eram tantas, que para dormir a noite, faziam camas suspensas nas árvores, pois tinham medo dos inúmeros bichos ferozes que rondava o acampamento e dos milhares de animais peçonhentos que existiam. 

O desmatamento da região não foi nada fácil, pois muitos dos assentados não tinham equipamentos próprios para fazer derrubadas das árvores de grande porte. Salvo aqueles que tinham parelhas de bois podiam arrancar árvores um pouco maiores, mas muitos colonos não tinham nada disso. Então, usaram a técnica da coivara, fazendo queimadas por toda parte para ter algum lugar para plantar.

Com as poucas ferramentas que tinham, eles fizeram muito para desmatar a região, pois contavam somente com machado, foice, enxadão, enxada e traçador manual, além de facas e facões e a boa vontade no coração de conseguir plantar as poucas sementes que tinham para a colheita.

Inicialmente plantaram arroz, feijão, amendoim, cana, mandioca, milho, e árvores frutíferas na região. 

Olhando assim, vejo como meu avô foi mais que um bravo; foi um herói sem medalha! Não só ele, mas tantos outros sertanejos nordestinos “cabra da peste” como costumam dizer lá no Norte; eles merecem medalha honrosa por bravura e heroísmo.

Acredito que tanto meu avô como a minha avó logo no início da colonização passaram por poucas e boas e muitas privações. Não era para menos, pois começar as coisas do zero numa região sem nenhuma infraestrutura não foi nada fácil. 

Com estes meus avós paternos convivi até me tornar adulto. Trabalhei na roça no sitio dos meus avós juntamente com meus pais, e saí de lá sozinho quando já tinha 19 anos, após ter concluído o antigo 2º Grau escolar – Técnico em contabilidade; de lá, me mudei para Campo Grande/MS, onde fui morar na casa de meus tios.  

Com relação aos meus avós paternos, não me lembro de ouvir alguma história do período que moraram no nordeste. Mas, tudo indica que a seca foi um dos ingredientes que forçou a migração deles para outras terras em busca de uma vida melhor.

Tanto que, aquela música de Luis Gonzaga – “A triste partida”, sempre emocionava minha avó.  Quando tocava no rádio essa música, ela sentia bastante saudade do lugar que nascera no nordeste e acabava até chorando. E faz sentido sim, saudade da pátria-mãe, né? 

Uma outra coisa também que vale a pena sublinhar aqui é que, minha avó não gostava que os netos a chamassem de vó. Ela dizia que as crianças a chamando de vó, parecia com o berro dos cabritos lá do Norte – “vóóóóh”. Então, todos os netos se dirigiam a ela chamando de “madrinha” e nunca de vó. Até mesmo meu avô, todos os netos também o chamavam “padrinho” e não de vô, mas já por conta da minha vó. Não sei se posso dizer que fui órfão de avós paternos por causa disso! Acredito que não, porque sempre soube que eles eram meu avós. 

Lembro muito bem, que minha madrinha/vó tinha um temperamento forte. Se precisasse falar alguma coisa para alguém, ela não mandava recado. Lembro-me que, quando guri fazia alguma travessura, minha vó brigava comigo dizendo: “vai cagar guri pra ter saúde!”.

Eu levei quase 40 anos para entender isso que minha vó dizia quando tive um problema intestinal e não conseguia evacuar, lembrei-me dessa frase da minha avó! Kkkkkkk.

Meus avós também tinham uma pequena venda; no interior chamamos de “bolicho”. Quando ia para escola e retornava na hora do recreio, minha vó sempre me esperava para me dar alguma coisa para comer. Poxa vida, como era gostoso aquele pãozinho doce com café que minha vó me dava! Eu trago uma certa saudade dessa minha vó/madrinha. Ela Morreu de diabetes ainda nova com 64 anos. Um colega de trabalho costuma repetir um ditado: “o maludo vive pouco, mas vive como quer”.

“Maludo” aqui tem a conotação de “brabeza” ou mesmo de teimosia.

No caso específico da minha avó, foi mais teimosia do que “brabeza”, apesar dela ser também muito brava mesmo. Ela sabendo de sua enfermidade, não se importou nenhum pouco em guardar um pouco de dieta e, querendo viver como queria sem seguir as orientações médicas acabou morrendo ainda muito nova com 64 anos.

Uma pena, né? 

De uma certa forma, a morte de minha vó pela diabetes foi uma espécie de suicídio velado, já que no início ela não queria se casar com meu avô e acabou cedendo a pressão familiar da época. Talvez isso explique um pouco porque algumas vezes quando estava nervosa ou irritada com meu avô por causa de alguma coisa, ela falava em se jogar dentro do poço para se matar.

Que pena, vó que a senhora ignorou as orientações médicas! Agora vejo vó, que sua vida seguiu um rumo diferente justamente porque havia uma resistência interior de não aceitação da vida e, a acredito que a senhora não olhava na mesma direção que o vô olhava, para ficar junto com ele até na velhice.  

Eu lamento por isso e lamento pela dor e sofrimento que a senhora suportou num casamento sem muito amor pelo meu avô. Viver como a senhora viveu no meio daquela mata bruta, longe de tudo e de todos, rodeada por bichos e insetos peçonhentos, não era pra qualquer um. E a senhora também foi mais que uma heroína; a senhora foi uma mulher de fibra que arcou perfeitamente com as consequências de suas decisões que tomou porque achava que era melhor.

Graças a isso, estou aqui hoje.  
  

Já meu padrinho/avô vivia mais no sítio trabalhando; quando estava na venda tomava uns goles de raizada (pinga curtida com raízes amargas) e acabava não prestando muita atenção nos netos que estavam por ali; salvo se a gente pedisse, aí ele nos atendia prontamente.  Meu avô gostava de competição. Tanto que, certa vez quis que eu pegasse uma “queda de braço” com um menino bem menor que eu. Eu perdi a “queda de braço” e meu avô ficou se lamentando por isso e até tirando uma “casquinha” ou melhor, debochando de mim, por eu ser bem maior que o menino e havia perdido.

Que vergonha que passei!  

Lembro também, que esse meu avó parecia ser um pouco “pão duro”. Mas, olhando a história dele, não era para menos. Passando por tantas privações e dificuldades que passou, acabava tendo que economizar cada centavo que ganhava. Na verdade, esse meu avô tinha que lutar mesmo contra tudo e contra todos e tinha que ser mais que um forte para conseguir vencer as batalhas da vida.

Sertanejo de sorte que era, meu avô carregava na testa respingo de pólvora e chumbo de uma velha espingarda que disparou acidentalmente. Usando uma das expressões que tanto ele costumava dizer, posso dizer também que esse meu avô era um “caboclo fi da lora” mesmo.

Caboclo forte e destemido tal era meu avô que morreu com 93 anos.

Agora posso dizer que entendo muito coisa que aconteceu, vô. Posso dizer que, entendo melhor sua história e seu jeito de ser. Agora sei o que passou ao lado de minha vó e as vezes o desgosto que sentiu ao ouvir dela palavras nem um pouco afetuosas.  

Eu lamento por tudo isso e vejo que o senhor foi um homem que tentou de todas as formas dar o melhor para os filhos e para a minha vó e também para os netos e netas. Espero ter aprendido com a escassez que o senhor passou na vida, pois os recursos que tinha na época era tão pouco, mas o senhor fez tanto trabalhando de sol a sol e debaixo de chuva, que lembrando de tudo isso aqui me enche os olhos de lágrimas! 

Obrigado vô, e sinceramente espero ter essa mesma força, dedicação e coragem que o senhor teve e a sabedoria suficiente para ter uma vida na abundância com prosperidade, saúde, paz e feliz com minha esposa e meus filhos.

Obrigado vô!

Já, por parte de meu avós maternos, ouvi muita história do meu avô Caetano.  Diferentemente de meus avós paternos, meus avós maternos vieram do nordeste de navio. A viagem de Pernambuco até São Paulo levou cerca de um mês. Minha avó teve enjoo no navio durante a viagem e vomitava o tempo todo.  

Quando chegaram em São Paulo, arrendaram terras para trabalhar.   Algum tempo depois, vieram para a Colônia Agrícola Nacional de Dourados em Mato Grosso para a região onde meu avô paterno já estava instalado.  

Bem, meu avô materno contava que comercializou laranja no lombo de burros de carga lá em Garanhuns, Bom Conselho no Pernambuco, e em Palmeira dos Índios - Alagoas.

Pelo que minha mãe conta, este meu avô tomava cachaça e ficava muito bravo. Quando retornava para casa embriagado, os filhos tinham que guardar toda e qualquer ferramenta para ele que ele não encontrasse e não atentasse contra a vida de minha avó ou de qualquer um dos filhos.

Num dos tristes episódios, certa vez um dos meus tios quase matou meu avô quando estava batendo na minha avó. Na briga, meu tio que estava já na adolescência, vendo minha avó apanhar, deu uma machadada nas costas do meu avô que quase o matou.

Segundo os relatos de minha mãe, por pouco não foi fatal. 

Esse meu avô tinha um ritual quando ia beber uma pinga, dizia o seguinte verso: “arreda tripa que lá vai fogo!”. Seguramente, meu avô carregava muito sofrimento e a bebida era uma forma de suavizar ou anestesiar a dor que sentia.

Olhando assim para meu avô, agora vejo e entendo e posso até imaginar as agruras que ele passou lá no nordeste para sobreviver no meio de tantos valentões e numa terra que dependia em muito da chuva para irrigar o solo, plantar e ter alguma coisa pra colher. Talvez a escassez tenha sido algo bastante comum na vida do meu avô.
 
Interessante notar que, observando esse tipo de comportamento do meu avô, tenho algo muito em comum com ele também. Parece que repito esse mesmo padrão do meu avô quando chego em casa. Exceto a cachaça que não tomo para ficar bêbado, "brabo" querendo matar todo mundo.

Mas, lembro-me que muitas vezes ao retornar pra casa, de repente estava aborrecido ou me aborrecendo sem nenhum motivo aparente com meus filhos e acabava gritando com eles. Até mesmo com minha esposa, muitas vezes falo alto demais e ela sempre, com muito carinho e paciência, me pede para eu baixar o tom.  

Agora eu vejo vô, que não obstante tomar a "marvada pinga" como o senhor tomava, eu me embriago com um monte de coisas inúteis que estão na moda hoje em dia que não me ajudam a ser um pessoa melhor, a ter paciência pra falar com os meus filhos, a ter calma para falar com minha esposa, e saber respeitar minha mãe e meus irmãos.

Só Deus sabe os motivos que levou o senhor a recorrer a pinga para tentar aplacar o vulcão interno que estava em erupção durante toda sua vida!

Consciente disso, espero que doravante possa fazer as coisas bem mais diferentes e melhorar meus relacionamentos com meus filhos e minha esposa e meus irmãos.

Com isso, espero melhorar também minha saúde, pois de vez em quando a gastrite nervosa me incomoda quando fico estressado com alguma coisa sem motivo, ou até mesmo por motivos pífios.

Talvez o senhor vô, tenha se sentido muitas vezes envergonhado após passar todo porre e já curado da ressaca, repensava um pouco as coisas que fazia.  Da mesma forma ocorre comigo vô; após passar minhas sessões explosivas com alguém, começo a repensar a besteira que fiz e o modo que falei. Chega a ser deprimente! Eu sinto muito vô e espero não usar essa “carga explosiva” que carrego dentro de mim para ferir as pessoas que mais amo na vida.

De verdade, espero vô usar todo o conhecimento que tenho adquirido ao longo de minha vida para o meu bem, para o bem da minha família e de todos meus familiares e amigos. Eu sinto muito vô e agora reconheço que o senhor também foi um bravo!

Com relação à minha avó materna, não a conheci. Minha avó materna teve muitos filhos. Segundo minha mãe, 21 filhos no total. Desse total, 8 filhos morreram quando criança e outros morreram após o parto.  As dificuldades eram enormes para criar os filhos.

Isto porque, quando faziam a pouca colheita, meu avô de posse do dinheiro se embrenhava no mundo, mais especificamente na farra e só retornava quando estava liso e sem nenhum tostão no bolso. Gastava o dinheiro com bebida, jogo de baralho apostado e possivelmente mulheres.

Minha mãe conta que, se queriam comprar alguma roupa, minha vó pegava os filhos ainda pequenos e faziam eles apanharem os últimos capuchos de algodão e vender escondido do meu avô para juntar algum dinheiro e comprar roupas.  

Minha avó materna faleceu ainda muito nova com 39 anos. Dos muitos filhos que teve, ela teve problema na placenta após o parto na última gestação e meu avô não conseguiu ninguém de carro para socorrê-la a tempo.

Quando encontrou um carro para levar minha avó para hospital mais próximo que ficava cerca de 10 km, ela acabou falecendo. Na época, minha mãe estava com 3 meses de casada.

Olhando assim esse breve relato, vejo como minha vó era forte e cheia de vida fazendo de tudo para criar os filhos e manter o casamento, num tempo em que separação de um casal era algo horrível, por vezes minha avó até tentou se separar do meu avô, porém, meu avô ia atrás dela, fazia mil juras que não ia mais beber, que ia mudar de vida. Minha avó acabava cedendo e voltando para meu avô.

Pouco tempo depois, recomeçava tudo de novo. 

Agora sei, vó, que a senhora fez de tudo para criar seu filhos numa situação de escassez, de sofrimento, de medo recheado de tanta dor e lágrimas. Às vezes se escondendo do meu avô para manter um casamento e preservar sua própria vida, porque ficar só naquela época com um monte de filhos era considerado um desastre e uma vergonha para a família; sem contar que, iria depender dos irmãos para lhe ajudar.

Hoje eu vejo a senhora, vó! Por muito tempo parece que a senhora foi uma pessoa apagada em minha vida. De repente, agora sinto que a senhora foi mais que uma heroína, foi uma pessoa comum que decidiu enfrentar a vida e as consequências de suas próprias decisões com toda a força que tinha.

Que pena que não a conheci em vida, vó! 

Depois que minha avó materna faleceu, meu avó acabou se casando novamente e teve mais dois filhos. Minha tia avó ainda está viva. Só que, a exemplo da minha avó, essa minha tia avó não aguentou muito o tranco com meu avô e acabou se separando dele; ela mora pertinho de minha casa, mas pouco vou lá visitá-la.

Tempo atrás quase ocorreu um assassinato. Um filho desse meu avô com minha tia avó, esfaqueou o irmão por parte de pai. A partir daí, tomei certa distância para evitar conversas desagradáveis.  

Meu avô tomou cachaça a vida inteira. Parou de beber quando teve problemas de saúde com pouco mais 80 anos. Ainda viveu até os 95 anos. Esse meu avô era muito forte e gostava de contar muitas histórias lá do nordeste.  
     
Com relação aos meus pais, convivi com eles até meus 19 anos. Minha mãe se casou muito nova com 15 anos de idade; meu pai tinha 21 anos. Somos em 5 irmãos, um já está no céu. A diferença de idade entre os irmãos está próximo de um ou dois anos, sendo pela ordem minha irmã mais velha, aí vem eu, meu irmão e minha irmã caçula. Por último, minha mãe teve uma gravidez de risco, devido o bebê ter sido gerado nas trompas, ela sofreu um aborto espontâneo e quase foi à óbito também.

Teve que ficar internada em torno de quase um mês no hospital com diversas complicações de saúde. 

Não me lembro de muita coisa da minha primeira infância. Soube de uma história contada recentemente por minha mãe em que eu quase morri no parto juntamente com minha mãe. Não estava numa posição correta (alguns dizem “sentado”, outros dizem “virado”) para nascer no útero de minha mãe, fui acompanhado somente pela parteira.

Era comum na época o parto acompanhado pelas parteiras. O que era motivo também para muitos óbitos de crianças e de muitas mulheres na época. Minha vó materna mesmo por exemplo, morreu após um parto por causa da placenta.

Não sei precisar com exatidão se foi nessa fase que certa vez me perdi numa feira na cidade de Vicentina; estava com meus pais e de repente, estava perdido no meio do povo. Um amigo da família me encontrou chorando e me levou de volta para os meus pais.

Não sei se isso justifica meu baixo desempenho em geografia durante o período escolar. Na verdade, fui aprender um pouco mais de geografia na prática quando morei na Alemanha e tinha que manejar os mapas para me localizar e se deslocar de uma região para outra.

Também não sei precisar se foi nessa fase ou na segunda infância que levei uma surra do meu pai por ter sido descoberto com minha irmã mais velha se tocando atrás de um guarda roupa. Não lembro se minha irmã apanhou também por causa disso. Não tinha nem noção do que eram os órgãos genitais, no entanto, apanhei para valer!  

Essa é uma história que permanece como uma espécie de segredo de família, pelo menos pra mim.  

Com relação à minha segunda infância, tenho algumas recordações. Lembro-me vagamente que fui para a roça com idade de 8 ou 9 anos. Também lidava com os animais, ajudando meu pai no manejo da carroça. Além de trabalhar na roça, meu pai comprava cereais como amendoim, mamona e feijão, milho e revendia. Quando estava um pouco mais crescido, ajudava na venda - “bolicho” e continuava trabalhando na roça. Porém, a vida na roça depende muito do fator climático e certa vez teve uma forte geada muito forte na década de 1970 que praticamente queimou toda a plantação.

Felizmente choveu logo após a geada e foi possível colher um pouco de feijão para o sustento familiar. Quando coisas dessa natureza acontecia, eu podia ver tamanho desespero nos olhos do meu pai, e a angústia no olhar da minha mãe. Sem contar que, por muitas vezes meu pai teve que recorreu à empréstimos de dinheiro, junto à um comerciante local com juros altos na época ou então emprestava dos bancos que também não amenizava muito.

Então, muitas vezes meu pai ficava preocupado com as dívidas e a noite nem conseguia dormir direito. Como se não bastasse, toda essa situação deixava meu pai de mal humor e qualquer coisa podia deixá-lo ainda mais nervoso. Se por ventura acontecesse algum acidente doméstico, como quebrar uma xícara, um copo ou um prato eu e meus irmãos acabávamos apanhando.

Nesse caso, a minha mãe mesmo tomava a dianteira e surrava a gente com chinela ou cinto. 

Estudei na escola municipal rural, e depois numa escola estadual na cidade vizinha que ficava a 6 km de onde morava. Lembro-me de um episódio que ocorreu na escola rural, quando participei de uma gincana e acabei perdendo uma prova de perguntas de conhecimento geral para um colega da turma que se chamava João, mais conhecido como João “Grilo”.

De uma certa forma, esse episódio me marcou profundamente, pois rolou uma “gozação” terrível dos colegas e até mesmo do meu adversário. O fato é que esse episódio me rendeu algumas dificuldades de me expor em sala de aula ou em outros ambientes.

A impressão que tenho, é que todo nordestino tem seu “João Grilo” de estimação, seja para as vitórias ou para as derrotas! Algum tempo atrás retornei para a minha cidade natal. Lá encontrei-me com esse colega de turma, João Grilo. Não sabia que ele havia sofrido um acidente de moto, ficando paraplégico e andando de cadeira de rodas. Senti algo muito estranho nesse dia, uma espécie de vingança pessoal ou satisfação. Ao mesmo tempo, fiquei me lastimando e senti pena do João por vê-lo agora naquele estado.

Acho que no fundo, guardei um misto de raiva e mágoa do João e dos demais colegas desde aquela época dessa bendita gincana.

O professor que conduziu a gincana não tinha muita noção dessas questões que hoje estão em voga na educação, o conhecido “bullying”.

Na época, se chamava “tirar um sarro” em alguém e achava que estava tudo certo. Mas pelo que vi, não é bem assim. Isso deixa marcas profundas na gente e causa um dano terrível para qualquer adolescente que está em formação!

Agora eu vejo isso. Eu sinto muito João. 

Com relação aos meus pais, digo que passaram para mim e para meus irmãos aquilo que receberam dos meus avós. Meu pai era meio “brabo” com a gente e por vezes até muito estúpido com todo muito dentro de casa e, de uma certa forma, minha mãe que casara ainda muito nova com 15 anos apenas, acabou ficando muito submissa ao meu pai.

Bastava um olhar de desaprovação dele para alguma coisa, que a gente já murchava todo e saia de mansinho.  

Aí dos filhos que pisasse na bola com ele, ou até mesmo se minha mãe mesmo tentasse peitá-lo!  Certa vez, eu e meu irmão levamos uma “coça” muito dura do meu pai por causa de uma briga de adolescentes; meu pai combinou com minha vó e meu tio que cada um dos pais iria pegar os respectivos filhos e dar um exemplo.

Meu pai me levou juntamente com meu irmão que era bem franzino, e deu uma surra de cordas na gente. A minha mãe assistia a tudo isso sem intervir. Restou a ela, nos dar banho de salmoura e se lamentar pelos vergões das cordas que ficaram marcados em nossas costas.

Uffa! choramos muito!

Algum tempo depois, levei uma outra surra do meu pai por causa de uma briga tosca que tive com minha irmã caçula. Minha mãe também me surrou algumas vezes, a chamada "(havaiana-terapia)", mas não era tão forte como o meu pai.  

Na adolescência me tornei uma espécie de confidente de minha mãe. Ela se lamentava do meu pai para mim e de outras coisas dos nossos familiares.

Quando fiz 18 anos, pensei em sair de casa, mas aconselhado por minha mãe, acabei ficando mais um ano até concluir o antigo 2º Grau.

Nesse período quando já era maior de idade, meu pai disse certa vez que se fosse para os filhos mandarem em casa que ele iria sumir de casa. Em momento algum, eu e minha irmã mais velha peitamos nosso pai.

Quando terminei o antigo segundo grau em 1985, mudei-me para a capital - Campo Grande/MS, no início de 1986 onde estou até hoje.  Meus pais ainda ficaram morando no sítio do meu avô até 1988, quando ocorreu um episódio desagradável.

Minha irmã mais velha acabou tendo um relação com um primo, e meu pai fez o chamado "casamento forçado" dos dois. Como meu pai ficou muito desgostoso, acabou se mudando também do sítio do meu avô para Campo Grande por volta de 1989. Toda essa violência doméstica sofrida desde a tenra idade até minha adolescência me fez ter um ódio terrível contra meu pai.

Eu ia na casa dele, mas não conseguia abraçá-lo.

Tempo depois, já morando em Campo Grande, fiz uma experiência de fé na Igreja Católica que me ajudou muito a ter um olhar de aceitação sobre tudo isso e de minha história de vida, porque no fundo eu a rejeitava profundamente.  Perdoar meu pai não foi tarefa fácil, mas a reconciliação me ajudou muito a poder abraçar e beijar meu velho novamente que, recentemente em dezembro de 2020 ele faleceu por complicações de uma cirurgia da vesícula. 

Porém, como um carro amassado que é consertado pelo funileiro, comumente fica algum resquício na lataria que precisa ser retocado novamente por algum profissional especialista, parece que preciso também de um tratamento profissional com um especialista.  

Não obstante a reconciliação e perdão com meu pai, parece que ficou uma espécie de resquício pessoal que precisa ser retocado mais profundamente. Por exemplo, ainda lembro da crítica que recebi do meu pai quando certa vez em casa tentei cantar uma música e ele me reprovou, dizendo algo como: “eita cabra ruim de cantoria!”.

Já faz algum tempo que tenho algumas composições musicais, mas parece que minha voz embarga e não sai; sinto que falta firmeza na voz pra para cantar. Como se faltasse ar. Talvez eu espere ainda a aprovação do meu pai.

Minha esposa mesmo disse que minhas músicas farão sucesso depois que eu morrer, ela irá vendê-las para alguém gravar.  E agora nesse curso de constelação sistêmica, estou percebendo essa realidade com mais clareza e, isto está me permitindo aprofundar alguns aspectos desses resquícios ou marcas que ficaram arraigadas em minha alma e poder curar de uma vez por toda.  

Olhando para tudo isso agora, percebo como ocupei indevidamente um lugar que não era meu na relação do meu pai com minha mãe.

Eu sinto muito pai!

Na minha inocência ou na minha ignorância e estupidez também fiz o que não devia, achando que estava ajudando minha mãe, acabei tomando o seu lugar.

No fundo, eu me achava melhor que o senhor; achava até mesmo que podia cuidar da minha mãe; eu me achava o super gênio e o mais sabichão que todo mundo. Ledo engano! Posso ter todos os diplomas do mundo, ser licenciado em história, ser doutor, pós-doutor e sei lá mais o quê, mas nunca poderei controlar meu temperamento explosivo se não contar com sua bênção nem com sua autorização para seguir em frente.  

Agora vejo pai, que se não reverenciar o senhor como meu pai e minha mãe como mãe, serei mais um infeliz na vida que vai se juntar à multidão dos infelizes pelo mundo afora.

Sei que o senhor não tinha noção ou consciência das consequências negativas e do peso da palavra de um pai para o filho. Parece que a avaliação negativa, fez com que eu tivesse certa dificuldade de aceitar a minha própria voz quando canto.  

Eu não tinha idade suficiente para entender isso na época e acabei carregando o peso dessa infeliz avaliação comigo até hoje. Hoje vejo tudo isso e sei que isso parecia até normal para o senhor. Mas não é normal. Era e talvez seja muito comum os pais criticarem os filhos quando menores.

Agora vejo que isso faz realmente um estrago medonho na psique do indivíduo que precisa de terapia para ajudar resolver essas sequelas. Talvez seja isso que tenha me impedido de ir para a vida e cantar minhas canções por aí, mesmo sem esperar que fizessem sucesso ou que pudessem agradar alguém pela minha voz não ser tão prodigiosa como alguns cantores tem.

No fundo, eu sempre temi a crítica que pudesse vir de qualquer pessoa, mas na real eu sempre ouvia sua voz me desaprovando.   E talvez seja por isso também que eu tenho feito algumas composições botando no papel alguns sentimentos que soam muito bem só pra mim, mas nunca tive interesse de apresentar para alguém gravar.

De alguma forma, como fiquei travado esse tempo todo sem cantar publicamente porque tinha sua desaprovação, nunca me dediquei mais seriamente nisso. Tanto que minhas músicas tem umas letras não tão alegres como muitos gostariam que fosse, mas são as minhas letras. Acho que nelas, falo mais de mim e de toda minha história de vida do que outra coisa.  

Agora vejo com outros olhos tudo que aconteceu e posso entender perfeitamente que sua avaliação não tinha intenção de me machucar, mas sim de me corrigir, de me dizer que eu tinha que melhorar, de saber impostar a minha voz no canto para seguir em frente, até mesmo de estudar a música para valer.

Hoje, tenho consciência que preciso melhorar em muitas coisas na vida, inclusive no canto. Eu lamento pai, se fiz disso um nó que atava minha garganta até hoje me impedindo de cantar ou cantarolar qualquer música sem pretensão nenhuma de ser artista. Isso até me custou muito a me aceitar como sou.

Eu sinto muito, pai!

Com relação à minha mãe, sinto que eu não a trato bem. Como se eu fosse mais e ela menos, mais sabichão e possuísse certo grau de superioridade sobre ela.  

Parece que tenho uma espécie de revolta interior com ela por não ter me acudido quando mais precisava naquelas terríveis surras que o meu pai me deu.

Tem também esse fato de ter me tornado confidente de minha mãe; em vez de ocupar o lugar de filho, passei a ser uma espécie de orientador conjugal. Com o tempo, isso parece que me deu uma falsa autoridade sobre minha mãe que consigo brigar com ela ou soltar meus bichos em cima dela quando estou estressado sem respeitá-la como minha mãe.

E ela dificilmente se zanga comigo. Isso realmente é desastroso e desrespeitoso de minha parte! E agora começo a perceber de onde vem essa ira que sinto em relação à minha mãe. Agora começo a ver minha mãe como mãe e não como filha de um pai raivoso e truculento que não permite a filha falar sem dá-la direito a voz.   

Eu sinto muito mãe!  

Eu criei uma falsa expectativa com relação à senhora e não fui atendido ou melhor, não fui socorrido a tempo quando precisava.

O banho de salmoura era tudo que a senhora podia fazer!

Qualquer palavra sua, significava afrontar diretamente meu pai. Certamente, a senhora tinha medo de sofrer qualquer represália por parte do meu pai, e a exemplo de minha vó Sinhazinha, também permitiu as atitudes violentas dele, não só comigo, mas também com meus irmãos e até mesmo com a senhora para salvar o casamento e não ficar abandonada à sorte dependendo dos outros.

Eu sinto muito mesmo mãe e peço que me perdoe por tê-la magoada com minha violência!

Não sou melhor que o papai e nem melhor que a senhora, mãe.

Sei que, a senhora carrega os traumas e sofrimentos dos seus antepassados, tanto quanto o pai carregou traumas e sofrimentos dele até o dia 21 de dezembro de 2021 quando faleceu com 78 anos. Ver isso agora, tem sido muito reconfortante e me dado esperança e paz para que eu possa olhar minha história com amor e paz de espírito.

A senhora fez o que estava ao seu alcance e devotou uma vida toda ao meu pai, não obstante o modo nada cordial de tratamento e por fim, até mesmo suportou uma traição. Soube também que por ter se casado muito nova, foi até difícil se entregar ao meu pai, mesmo já casada e tudo mais. Trazia um certo puritanismo com relação ao corpo e isso dificultava sua relação com o pai. Eu só tenho que agradecer de ser quem sou, graças a união da senhora com o papai.

Não obstante serem primos, formaram um casal com as bênçãos de Deus. Sei que está sendo muito fácil para a senhora superar o luto que ainda vivendo agora, mas isso tudo vai passar e a senhora vai poder continuar indo em frente.

Eu também fiquei muito triste juntamente com meus irmãos e parentes com a morte do pai. Mas essa foi a trajetória de vida dele e cada um tem a sua para viver. Todos nós estamos muitos saudosos por isso.

Por fim, eu gostaria de dizer, mãe, que já não serei mais o seu confidente conjugal, não só porque o pai faleceu, mas porque estou reconhecendo o meu lugar de filho nessa família e espero que a senhora entenda isso.

Eu sinto muito pelas vezes que fui tão estúpido e grosseiro com a senhora. Talvez, vi certos exemplos em algum lugar e acabei me espelhando equivocadamente no trato com a senhora. Não era para menos. Todos meus tios sempre trataram mal as esposas, com brutalidade e ignorância; aqui mais no sentido de estupidez mesmo.

Eu sinto muito mesmo, mãe!

Com relação aos meus outros familiares, entre eles muitos tios e parentes próximo, sempre tive uma certa vergonha deles. Eram metidos a valentões e brigões nos campos de futebol ou nos bailes e festas. Tinha um apelido de família chamado “pau-ferro” que ganharam de um lugar vindo lá de uma cidadezinha de Pernambuco. Eu nunca aceitei muito isso durante boa parte de minha vida.

Hoje, isso está mais ameno e consigo lidar melhor com essa questão. Porém, ao negar esse apelido de família, parece que negava o meu sentido de pertencimento à essa família. Não era eles que me excluíam, muito pelo contrário, era eu que me excluía da família.

Agora vejo e quero dizer aos meus tios e parentes próximos, que eu sinto muito por ter tido essa vergonha de vocês. Vocês eram o que eram porque era o que dava para ser, e não podia ser diferente.

Sinto muitos meus tios. 


Peço licença aos senhores minha mamãe e meu papai, para que, doravante eu mesmo possa fazer minhas escolhas na vida, sem desconsiderar tudo que fizeram por mim.

Eu reverencio vocês, os meus pais e a todos meus antepassados, pois, foi graças a eles que cheguei até aqui e posso continuar a minha vida. Agradeço por tudo de bom que fizeram por mim e continuam fazendo.  

Aquelas coisas que não foram tão boas assim, só posso lamentar e na minha liberdade dizer que não as quero pra mim.

De coração, para minha felicidade e felicidade dos meus filhos, peço as bênçãos dos meus pais, dos meus avós e de todos meus antepassados que fizeram de tudo para que eu pudesse chegar até aqui.

Agora sei que, ao olhar para tudo isso, as coisas ressoam muito bem em mim. Como no livro de Rupert Sheldrake que descreve sobre o experimento dos pombos que sempre retornam para o pombal, de maneira semelhante estou fazendo essa experiência de retornar para meu pombal, ou melhor, olhar para meus familiares que são os meus antepassados onde estão as minhas bases de apoio.

Gratidão por tudo amados! 


 

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