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MINHA MÃE E A SUA VELHA MÁQUINA DE COSTURA

MINHA MÃE E A SUA VELHA MÁQUINA DE COSTURA
Márcia Regina Valderamos
nov. 6 - 8 min de leitura
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Oi mãezinha, tudo bem? Saudade.

Já estamos longe há 12 anos e parece que vou te ver a qualquer instante. 

Hoje vim te convidar a sentar-se comigo aqui na sua máquina de costura, uma velha máquina que você gostava tanto e não deixava a gente encostar. Eu “aprendi a dirigir” na roda onde vai as correias dela, lembra?

Era muito divertido!

Sentava no pedal dela, chacoalhava para e para cá, e ficava “manuseando o volante”, fazendo o barulho de motor de carro com a boca. Dava brecada, voava, maior aventura, até você chegar e me arrancar dali a tapas e me bater muito!

Meu irmão mais novo também acabava apanhando porque queria “dirigir” também e não entendia, como eu também não, porque você ficava tão brava. Você gritava que eu era uma praga, uma peste, que estava desalinhando, acabando com a sua máquina, estragando tudo o que era seu como eu sempre fazia.

Ah, eu chorava porque, claro, doía a surra, mas doía mais as suas palavras e a raiva que eu via em seus olhos, nos seus gestos e por eu perceber que a máquina não tinha sido estragada, pelo contrário, você podia usá-la normalmente.

Você sim, enquanto costurava, acabava sempre se irritando porque as correias saiam do lugar, porque não tinha os materiais adequados que queria para costurar, as linhas partiam, emaranhavam no carretel, você reclamava, reclamava, ficava nervosa, fazia com raiva e aí, as agulhas quebravam e o seu trabalho ficava sempre mal acabado, com o avesso feio, com muitos emaranhamentos das linhas.

Vem ver mãe, senta aqui.

Olhe esse acolchoado de retalhos que você fez com os restos de pano que ganhou não sei de quem. Olhe esse avesso. Está vendo? Do lado direito está até bonitinho, mas olha o emaranhamento, os fios, o grosso que ficou aqui no verso.

Vamos juntas arrumar isso?

Você dizia que eu não prestava para nada e eu sempre quis te ajudar a melhorar isso; agora nós podemos; aprendi como. Sinto muito se percebi sempre o que estava errado e quis consertar me metendo na sua costura!

Eu não queria te desrespeitar!

Queria ajudar! Sinto muito, mãezinha por ter te julgado tanto, mas você era muito brava, depois, conforme fui crescendo, você foi mudando, ficando mais mansa, mas muito geniosa, teimosa sempre! Hoje eu entendo.

Você não teve afeto, tudo teve que ser feito por obrigação, com muito sofrimento, sem amor; nossa família não tinha recursos financeiros, você, assim como o pai, não estudou e era o que tinha para usar na costura e na vida; era o que sabia fazer.

Sempre nos foi muito útil tudo o que você costurou, tudo o que você fez e como fez e eu lhe sou muito grata por tanto e por tudo! Me lembro quando comecei a estudar o ginásio e você e o pai não tinham dinheiro para comprar meu uniforme.

Você emprestou dinheiro para pagar o que eu usava no dia a dia e a roupa para a educação física, a camiseta, a sainha branca plissada e o shortinho vermelho você fez com uma blusa, virou meu shortinho, outra blusa a camiseta e a saia branca plissada você recortou sua saia para fazer.

Ficou lindo! Eu era apaixonada pelo meu uniforme. Cada uma das peças! A sainha branca plissada era a que mais eu amava de todas, porque pensava: “se ela cortou a saia dela, que ainda estava boa, para fazer essa para mim, pode ser que ela me ame, apesar de brigar tanto comigo”!

Mas, tragicamente, pouco tempo depois, esqueci a sacola com a minha amada sainha no banco do ônibus que tomei na volta da escola! Eu queria morrer! Queria sumir, mãe; você nunca soube da luta que travei comigo mesma, aos 10 anos nessa situação, quando me foi confirmada a sua praga: “você estraga com tudo o que é meu”!

Pensei em fugir de casa, me matar! Sabia que você não me perdoaria! Mas, eu tinha tanto medo de ficar sem você! Não podia me imaginar sem o pai, sem o Milton!

E Deus?! Deus me mandaria para o inferno por te fazer tanta desfeita, como você dizia quando me batia! Mas, você nunca soube desse conflito e de outros que vivi. Não, você não quis conversa e me desceu o fio de ferro no corpo! Me disse que eu não iria mais para a escola, porque sabia que esse seria o pior dos castigos para mim aqui na terra! Sei, você não podia imaginar. Tudo bem. Olha aqui, mãe: consegui achar o fio da meada desse emaranhamentozinho aqui!

Olha quanto já melhorou! Pode deixar. Eu faço por nós agora.

Vou sentar na máquina e vou recosturar.

Você fica sempre comigo enquanto vou desfazendo os emaranhados, descosturando e costurando o que está grosso, desconfortável, ok? Mesmo porque, você é o pai me constituem. Jamais saíram de mim!

Sou o resultado de vocês, mas posso ir além com o que vocês me deixaram de bom.

Me ensina como costurar na máquina da vida e eu, com essa tua força, refaço o avesso desse amado acolchoado, pois hoje tenho meios de melhorar e deixar esse avesso mais bonitinho, mais aconchegante para nós usarmos.

Somos tão parecidas, mãe! Queremos as coisas do nosso jeito e somos metidas!

Achamos que ninguém sabe fazer melhor! Mas, é que fomos criadas sozinhas, eu, você e todos do nosso sistema, principalmente as mulheres, tendo que se virar, fazendo o medo virar raiva, para se defender e sobreviver! 

Fugir para não ser preso, morto! Agressividade alta, a ponto de, se precisar matar para não morrer! Covardia! Bater para não apanhar! Se ausentar para não sofrer; não se entregar para não sofrer novamente com abandono, rejeição; querendo ser perfeita porque não confia em sua capacidade e por aí adiante!

Agora eu vejo!

Olha, mãe, veja quanto já deu para refazer, desemaranhar aqui! Que beleza! Estamos no caminho certo parece! Só tenho que ter cuidado para não ser muito intensa como você era, pois o tecido está velho e gasto, muito frágil.

Não quero mais rasgá-lo! Quero deixá-lo mais apropriado para o consumo, para o uso. Esse acolchoado sou eu. A máquina singer antiga é a vida, é preciso aprender a manuseá-la, sem brigar com ela. Obrigada pelo apoio, pelos ensinamentos, mãezinha.

Tinha que ser como foi.

Gratidão! Porém, peço sua permissão para prosseguir esse trabalho do meu jeito, um pouco diferente do seu. Vai acontecer, claro, de ser mais difícil tirar o grosseiro de algum lugares dessa costura, as agulhas e correias podem quebrar por eu estar aprendendo ainda, mas penso que sua essência vem e me capacita, junto com meu coração e minha mente que estão remoçando através das minhas mãos, das minha ações.

Eu sei: é muito difícil recomeçar, desfazer os malfeitos nesse tecido tão gasto pelo tempo e mesmo assim, você sabe como eu sou teimosa, vou continuar a querer melhorar esse avesso do acolchoado para poder sempre sentir sua proteção e cuidado nele, porque eu sei que você não conseguia demonstrar porque não teve, mas você sempre quis me amar e ser amada por mim.

Me abençoe, mãe. Vou continuar daqui, com o seu melhor em mim!

Descanse em paz!

Na dimensão em que você hoje está, essas “picadas de agulhas “, esse trabalho feito grosseiramente, com raiva, já não podem te atingir.

Fique com isso, mãe.

Leve também esses pedaços de tecido que só atrapalham o desenvolvimento do meu trabalho e esses emaranhados de linha que estou retirando quando se desfazem com a minha intervenção.

Tudo isso é seu.

Somos parecidas, mas eu sou eu e não você. Vou descobrir quem sou e prosseguir, por algum tempo ainda por aqui, com o que Deus quer que eu faça o que também preciso descobrir.

Vou ficar, mãezinha! Agora não precisa mais. Acabou!

Vai com Deus! Eu faço. Agora eu posso.

 

Lígia Guerra

 


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